Se estivéssemos a ver um filme ou uma série do realizador canadiano Jean-Marc Vallée, tal como nos habituou em trabalhos como Big Little Lies, provavelmente começaríamos aqui, pelo fim. O cineasta foi encontrado sem vida, este domingo, na sua cabana junto à cidade de Quebec. Tinha 58 anos e deixa dois filhos.
Prolífico tanto na tela gigante, com filmes como o aclamado O Clube de Dallas (vencedor de três Óscares), Wild ou Demolition, como na televisão, com produções como Big Little Lies ou Sharp Objects, o cineasta criou uma legião de fãs pelo seu estilo de edição e narrativa, desconstruindo a linha temporal dos seus trabalhos, de forma a criar um retrato honesto e sincero dos seus personagens.
Além do seu peculiar estilo de edição, que valeu a Vallée uma nomeação para Óscar, em 2014, pelo seu trabalho n’O Clube de Dallas, os filmes do canadiano eram reconhecidos pela sua abordagem naturalista, conseguida através da utilização de luz natural e de câmaras portáteis.
“[Os meus atores] podem mover-se como bem entenderem”, disse numa entrevista, de 2014, citada pelo Guardian. “O que importa é conferir a importância devida à narrativa, às emoções e às personagens. Eu tento não interferir demasiado”.
Este estilo permitia que os atores dos seus projetos exibissem o seu vasto talentto. Basta recordar a cena inicial de Wild, filme biográfico protagonizado por Reese Witherspoon (nomeada para o Óscar de melhor atriz principal por esta performance), que decide percorrer o Pacific Crest Trail (percurso pedestre que atravessa os EUA), com a personagem principal a arrancar uma unha solta do seu pé.
“Jean-Marc Vallée foi um cineasta brilhante e ferozmente dedicado, um talento verdadeiramente fenomenal que infundiu cada cena com uma verdade profundamente visceral e emocional”, lê-se num comunicado publicado pela HBO, onde foram lançados Big Little Lies e Sharp Objects.
“Também foi um homem extremamente atencioso, que investiu todo o seu ser ao lado de cada ator que dirigiu. Estamos chocados com a notícia de sua morte repentina e estendemos as nossas mais sinceras condolências aos seus filhos, Alex e Émile, à sua família e ao seu parceiro de produção de longa data, Nathan Ross”, lamentou.
Um maestro na arte da emoção Jean-Marc Vallée nasceu em Montreal, no Quebec (Canadá), em março de 1963. Estudou cinema no Collège Ahuntsic e começou a sua carreira a desenvolver videoclips, em 1985, para artistas como Wild Touch, Glockenspiel, Park Avenue, Angel ou New News.
No início dos anos 1990 fez a transição para o cinema, desenvolvendo algumas curtas-metragens que chamaram o interesse da crítica no seu país.
O seu primeiro filme de longa duração, Liste Noire, um thriller sobre juízes e políticos corruptos, lançado em 1995, foi um enorme sucesso, tornando-se o filme mais lucrativo do ano no Quebec.
No entanto, foi com C.R.A.Z.Y., filme “coming-of-age” de 2005 inspirado na sua adolescência, sobre um jovem que vivia no seio de uma família conservadora, que catapultou Vallée para Hollywood e lhe abriu a porta para projetos mais ambiciosos financeiramente.
Depois dos sucessos modestos de The Young Victoria e Café de Flore, o realizador chegaria, em 2013, ao projeto que cimentou o seu nome na indústria: O Clube de Dallas, um filme baseado na história real de Ron Woodroof, um eletricista do Texas diagnosticado com cancro e que passa a distribuir ilegalmente medicamentos não aprovados pela Food and Drug Administration (FDA).
Este filme não só elevou o perfil de Vallée, como fez brilhar ainda mais as “estrelas” deste filme, Matthew McConaughey e Jared Leto.
Através da direção de Vallée, McConaughey, que perdeu mais de 20 quilos para interpretar um desprezível e irreconhecível Woodroof, e Leto, que também fez questão de perder 13 quilos para interpretar o papel de Rayton, um transexual seropositivo, venceram, respetivamente, os Óscares de Melhor Ator principal e secundário.
Este filme foi o culminar daquilo que ficou popularmente conhecido como o “McConaissance”, o regresso a Hollywood de McConaughey e a sua passagem de protagonista de comédias românticas leves para filmes dramáticos e um dos melhores atores da sua geração, e firmou ainda Jared Leto como um nome de peso em Hollywood.
O ativista Peter Staley contou à Vanity Fair que teve uma longa batalha contra o realizador para este pôr de parte a homofobia e a negação da sida no filme, ao que Vallée lhe explicou que “em todos os seus filmes tenta capturar a humanidade e revelar a beleza por trás deste sentimento”.
Ainda para o grande ecrã, o cineasta realizou Wild, que também valeu a Laura Dern uma nomeação para Óscar, e o subvalorizado Demolition, onde Jake Gyllenhaal interpreta um homem a tentar reconstruir a sua vida depois de um acontecimento trágico “demolir” a sua realidade.
“É engraçado como nestes três filmes as personagens têm que se preparar para lutas; eles têm que lutar para encontrarem a sua felicidade, para encontrar a verdade e eu relaciono-me com essa questão e é o que faço no meu meio profissional”, disse o realizador numa entrevista ao The Take, sobre como foi realizar este filme lançado em 2015. “A vida é uma constante batalha. E o Demolition foi uma batalha – e não das mais fáceis”.
Contador de histórias Nos últimos anos, Vallée adotou a televisão para expressar a sua arte e criou duas das séries mais aclamadas da última década: Big Little Lies, sobre um grupo de mães que aparentemente vivem uma vida perfeita e que se encontram no centro de um assassínio, e Sharp Objects, sobre uma jornalista que regressa à sua terra natal para cobrir um assassínio.
Estes projetos juntaram algumas das mais talentosas atrizes da indústria, nomeadamente, Reese Witherspoon, Shailene Woodley, Zoë Kravitz, Laura Dern, Meryl Streep, Amy Adams, Patrica Clarkson ou Eliza Sanlen. Big Little Lies expandiu-se em duas temporadas e venceu 8 Emmys e Sharp Objects foi nomeado para oito categorias deste prémio, mas não venceu nenhuma das distinções.
“Sharp Objects mudou a minha vida e, sem eu saber, ajudou-me a curar feridas da minha própria infância”, escreveu na sua conta de Twitter pessoal a crítica de cultura Kaiya Shunyata. “Jean-Marc Vallée foi um dos mais compreensivos e genuínos contadores de histórias do cinema e televisão modernos. Uma inspiração para um aspirante a realizador de filmes. Estou devastado”.
“Ele era um amigo, um parceiro criativo e um irmão mais velho para mim”, disse Nathan Ross, sócio da produtora Crazyrose, em comunicado. “O maestro fará muita falta, mas é um conforto saber que seu belo estilo e trabalho impactante que ele compartilhou com o mundo vão viver.”
O cineasta estava em fase de pré-produção do seu mais recente projeto, Gorilla and the Bird , uma adaptação das memórias de Zack McDermott, um advogado que sofreu um surto psicótico, que seria também lançado através da HBO.