Ser camionista de longo curso é tudo menos fácil e esta é uma verdade assente. No entanto, os perigos iminentes e a eventual morte durante o expediente não deviam ser possibilidades que estes profissionais não estranham. No passado dia 19 de dezembro, Eurico Guerreiro Ferro, de 48 anos, perdeu a vida em França, mais especificamente, na zona de Calais, onde a crise migratória tem vindo a agudizar-se e, inclusivamente, existe um campo de refugiados.
O homem, natural de Vila Nova de Cacela, freguesia do município de Vila Real de Santo António, entrou em confronto com três migrantes que subiram a bordo do camião, sem que se apercebesse disso, para passarem a fronteira com o Reino Unido. Depois de o terem agredido, na estação de serviço de Epitre, local de paragem para condutores que atravessam o Túnel da Mancha, Eurico – que era bombeiro de reserva da corporação de Vila Real de Santo António, tendo ingressado nos Voluntários com apenas 15 anos e exercido funções enquanto bombeiro profissional entre os anos de 2005 e 2019 – conseguiu expulsá-los da viatura, mas acabou por ter um ataque cardíaco fulminante.
“Não somos irmãos de sangue, mas crescemos juntos e éramos muito mais do que isso”, começa por explicar, em declarações ao i, Helena Pires, uma das melhores amigas do camionista. “Desde que me conheço que o conheço a ele também. Era só dois anos mais novo do que eu. Morávamos um ao lado do outro e sempre houve muita brincadeira e asneiras feitas na minha casa e na dele!”, conta, narrando que, como o pai de Eurico era mecânico, brincavam dentro dos carros que este arranjava.
“Era uma verdadeira aventura. E, desde sempre, eu tratava-o por Jaquelin e ele tratava-me por Nita”, constata, com tristeza, enquanto estava ao pé de uma das irmãs de Eurico que deixou claro, desde o início, que a família não está preparada para falar sobre aquilo que aconteceu. “A mãe não sabe sequer das circunstâncias da morte”, revela, adiantando que o algarvio foi submetido a uma cirurgia cardíaca há aproximadamente dois anos.
“Tomava medicação, mas tinha estado com ele há pouco tempo e dizia que estava bem. No entanto, eu não achei o mesmo porque ele tinha os pés e as pernas muito inchados. Disse-lhe que os camiões não eram vida para ele e que devia voltar para os bombeiros”, confessa, lembrando que, depois da intervenção cirúrgica, o comandante daquela corporação oferecera um lugar na secretaria ao atual camionista para que este “não andasse no stresse das ambulâncias”. “Ele não quis, penso que por questões monetárias e alguma pressão da companheira”, aponta, esclarecendo que as memórias que guardará para sempre de Eurico não poderiam ser melhores.
“Estava sempre a fazer-me rir com patetices. Num sábado à noite, fomos com uns amigos a um bar em Monte Gordo. Fomos no meu carro, ele adorava conduzir. Chegados ao destino, saímos do carro, ele pegou em mim e pôs-me de cabeça para baixo. E eu a ver as coisas a caírem da mala e aos gritos! Claro que o pessoal todo se riu”.
De acordo com Helena, a informação que tem vindo a ser veiculada pelos órgãos de informação corresponde à realidade, pois “segundo uma testemunha, Eurico viu três indivíduos a rondarem o camião e alertou as autoridades francesas”, mas os migrantes invadiram o camião e o desfecho foi trágico. “No relatório da autópsia é referido que ele morreu de ataque cardíaco, mas tem hematomas na cara e um golpe profundo na testa”, frisa, adiantando que, apesar da burocracia com a qual têm lidado, esperam que o corpo de Eurico chegue a Portugal entre hoje e amanhã. “Temos família em França que está a tratar de tudo. O corpo vem via aérea até Lisboa porque não dá para vir para Faro por causa da pandemia. Segue depois de carro até ao cemitério de Cacela Velha”.
“O motorista é o elo mais fraco” Apesar de o caso de Eurico corresponder a um extremo, não se pode dizer que seja tão inesperado quanto se possa pensar. Em janeiro deste ano, era a primeira vez que Luís Marques, hoje com 49 anos, viajava até à Grécia. Quando estava a descansar, no dia 10 – uma semana após ter saído de Portugal –, não se apercebeu de que quatro imigrantes ilegais, três afegãos e um iraniano, haviam entrado no seu camião.
Na tarde daquele domingo, ciente de que não tinha feito nada de mal, quando já estava na fila para o barco, no porto de Patras, que o levaria até Itália, país onde teria de descarregar, antes do regresso a Portugal, viu-se confrontado com a presença dos quatro homens durante o controlo fronteiriço. “Abriu as lonas de boa vontade porque na ideia dele não tinha lá ninguém. Foi um choque muito grande para ele. Eu ligava para a polícia marítima e, quando me atendiam, desligavam a chamada porque não sei falar inglês. Ou então passavam-me a uma senhora que gritava ‘Portugal” e o meu marido vinha ao telefone”, conta Lúcia Moura, de 44 anos, a esposa do camionista que ficou mais de três meses naquele país do Mediterrâneo.
“O meu marido não teve direito a um tradutor e foi presente a uma juíza sem saber o que ela dizia e nem ela o compreendia. Foi complicado e fui pressionada pelo senhor Conselheiro de Embaixada, João Ricardo Mendes, porque, ao fim de duas semanas queria entrar na comunicação social, e ele dizia-me que só ia prejudicar o meu marido porque os gregos não gostam dos portugueses”, confessa, lamentando que o processo somente tenha começado a ter andamento quando expôs a situação no programa Linha Aberta, da SIC.
“Ele foi detido no dia 10 de janeiro e fui buscá-lo ao aeroporto de Lisboa no dia 23 de abril. Ficou tudo lá: o GPS, o cartão do cidadão que diziam ser falso, o telemóvel… Só trouxe a roupa que tinha no corpo. Quando o fui buscar não o reconheci porque vinha magro e muito pálido”, admite, avançando que, volvidos nove meses, o companheiro ainda frequenta consultas de Psiquiatria e toma medicação, não se sentindo confortável para abordar o tema.
“Eu não toco no assunto porque sei que o afeta psicologicamente. Ele foi trabalhar a 22 de setembro porque nós somos sete bocas a comer diariamente, mas ele está sempre com medo de que entre alguém no camião, acima de tudo, numa área de serviço”, declara, acrescentando que Luís “nunca mais foi à Grécia” e os países que mais tem visitado são a Alemanha e a Bélgica. Em janeiro, Lúcia juntar-se-á a ele, tendo tirado a carta de pesados para começar a trabalhar na mesma área. Para se preparar, já fez uma viagem e não gostou daquilo que viu. “A 23 de novembro, na fronteira entre Espanha e França, eram só clandestinos a pé”.
“Estamos à espera da decisão, que o julgamento seja arquivado, porque depois vamos recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Quando foi detido, esteve quatro dias sem comer, oito sem tomar banho e ninguém se importou. Desde que ele regressou, ninguém nos ajudou”, lastima, adicionando que, no decorrer da permanência em “seis ou sete prisões, a comida dele era batatas cozidas, arroz ou massa, mais nada”.
“Por isso, eu ligava ao senhor João Ricardo Mendes e pedia-lhe que mandasse dinheiro ao meu marido. Ele fazia isso e eu enviava-lhe um Western Union. Ninguém pagou nada. Até o teste à covid-19 que ele fez antes de vir embora foi pago do nosso bolso”, elucida a mulher que teve a oportunidade de conversar com Marcelo Rebelo de Sousa. “Fui falar com o Presidente da República porque disse à SIC que se ele não me atendesse, faria greve de fome com os nossos dois filhos menores. Ele disse-me que só podia fazer com que a caução fosse mais baixa. Eu sozinha é que dei a volta a tudo”, lembra, visivelmente magoada, e não ocultando que estava decidida a ir à Grécia com o filho mais velho porque a empresa do marido, “que foi sempre cinco estrelas”, pagou os advogados “cá e lá”, todos os salários e estava disposta a financiar igualmente esta necessidade.
Todavia, João Ricardo Mendes tê-la-á informado de que, caso tal se verificasse, teria de fazer uma quarentena de 14 dias. “Assim sendo, não fomos, mas exigi falar com o meu marido. E ele conseguiu que falasse com ele às quartas e domingos por Skype. Depois, começaram a tirar-me a quarta e, por fim, tiraram-me o domingo e quiseram castigar-me porque expus o caso”, reconhece, voltando a realçar que Luís foi maltratado em todos os estabelecimentos prisionais gregos pelos quais passou.
“Penso que o dia 10 de janeiro será sempre um martírio e nunca mais o esqueceremos. Estávamos a uma distância de milhares de quilómetros e não podíamos fazer quase nada. Quando saiu o valor da caução, o embaixador disse que o meu marido ia para um hotel pago pela empresa, mas ele ainda esteve preso mais oito dias. O cartão do cidadão era válido, mas para eles não era. E o embaixador teve de fazer um visto para ele sair daquele país”, recorda, ainda perturbada, não entendendo como é que nunca mais tiveram notícias das autoridades gregas.
“Nem aos bichinhos do monte desejo aquilo que nós passámos”, remata, denunciando que um polícia grego, casado com uma cidadã brasileira, prometeu a Luís que o tiraria da prisão se este lhe pagasse. “Queria extorquir-nos dinheiro. Um dia, o meu marido ligou-me e disse ‘Tens de me mandar dinheiro para aqui, o polícia diz que me leva à Bélgica’. E eu telefonei ao senhor Conselheiro e expliquei tudo. E ele respondeu: ‘Quando o seu marido lhe ligar, diga-lhe para não falar com ninguém’. Eu percebi logo que naquele país é tudo corrupto: juízes, advogados, polícias e tudo o mais”.
“Nos primeiros dias, via-os [aos refugiados] nos barcos e tinha pena, mas agora não tenho porque aquilo que fizeram ao meu marido… De certeza que fizeram a muitos”, diz a mulher que chegou a ter de ir ao hospital por ter um ataque de ansiedade e arritmia cardíaca quando desconhecia qual seria o futuro do marido. “Se eu caísse e desistisse, se calhar ele ainda hoje estava lá. A juíza, sem entender nada, queria condenar o meu marido a 10 anos de prisão e pedir-lhe 240 mil euros”. Porém, “o advogado grego foi ótimo e exigiu que a juíza acedesse às filmagens e isso para a Grécia não foi conveniente porque só queriam ver os refugiados e não o meu marido com um ferro na mão para se defender”, garante, finalizando que “o motorista é o elo mais fraco”.
Uma das pessoas que mais ajudaram o casal Marques, para além de Fernando Frazão (do grupo 'Motoristas do Asfalto') foi Natalie Andrade, de 49 anos, camionista há 12. “Eu era uma mulher com uma vida normal, digamos assim, casada, com um filho e entrei nesta profissão que já era um sonho que tinha. Divorciei-me e agarrei-me a esta oportunidade. Ao princípio, fiz sempre Europa e há dois anos comecei a ir apenas à Holanda”, narra, tendo passado por uma situação semelhante à de Luís. “Trabalhava nos transportes de Valado dos Frades, cheguei à fronteira entre França e Inglaterra e fui apanhada com 14 clandestinos”, isto é, 12 homens, uma mulher e um bebé, tendo passado grande parte daquele dia detida.
“Até para ir à casa de banho tinha de estar algemada e levava uma polícia comigo. Não me deram água, um café, um chá… Nada! Era simplesmente um animal que estava ali”, recorda com tristeza, asseverando que as autoridades tinham conhecimento de que os imigrantes ilegais se encontravam dentro do seu veículo porque, por aquilo que sabe, entraram no mesmo em Châtellerault, uma comuna francesa na região administrativa da Nova Aquitânia, no departamento de Vienne.
“Estive presa, na altura era uma suspeita. E entendo porque há muita gente que ganha dinheiro à conta disso. Quando analisaram os registos das horas e do percurso, os migrantes disseram a verdade… Se tivessem mentido, provavelmente, hoje ainda estaria lá”, explicita a mulher que tem dupla nacionalidade – portuguesa e francesa – e nasceu e viveu em Amiens, no norte de França, até aos seis anos. “Isto foi em 2014. Foram tentar saber tudo sobre mim e ainda enviaram um email para o sítio onde nasci! Ficaram à espera para perceber que não tinha culpa e mandaram-me seguir viagem”.
“Por mais cuidados que tenhamos, corremos sempre muitos riscos. Já fui roubada nas áreas de serviço. Até ao dia de hoje, nunca me assaltaram dentro da cabine porque fecho o camião na hora de descanso e até ponho uma cinta”, no entanto, não oculta os perigos que existem para além deste, até mesmo provocados por colegas de profissão. “Somos muito discriminados. Por exemplo, condutores polacos, ucranianos, etc. que vieram para a Europa estragaram tudo. Em França dão-nos todas as comodidades para tomar banho e essas pessoas não sabem preservar as coisas. E quando estão parados 48 horas, metem-se no álcool e arranjam confusões. Não vão despejar o lixo. E é normal que olhem para nós da mesma forma. Eu até compreendo, mas é muito chato”, expõe, criticando o facto de as motoristas mulheres estarem expostas a situações ainda mais graves.
“Nós, mulheres, somos discriminadas a nível dos colegas – veem-nos como um bocado de carne, não há respeito – e temos mesmo de gostar daquilo que fazemos e esse é o meu caso. E há quem me venha bater à porta às 2h e 3h da manhã… É uma vergonha!”, constata. “Há colegas que vão para zonas um bocado perigosas, como aquelas que são conhecidas pela prostituição, e são roubados. E também sei de alguns que já morreram dentro dos camiões com AVCs e aneurismas”.
“E sei de um colega que era novo, tinha um filho pequeno, a mulher tinha sido motorista e largou a profissão para ser mãe, e ele foi socorrer um colega espanhol, parou em Tordesilhas” e quando se aproximou do colega, tal como dois camionistas que pararam os veículos atrás do seu, um camião “veio lançado a toda a velocidade e matou todos, enquanto o outro senhor morreu queimado dentro da cabine”.
“Já não há camaradagem, não há entreajuda, ninguém sai dos camiões e quer conviver. Já cheguei a passar 45 dias fora mas, agora, são sete dias, normalmente, e posso dizer que esta situação dos refugiados é gravíssima. Acampam por trás dos arvoredos, correm atrás dos camiões, entram dentro dos reboques, espetam troncos no meio da estrada para verem se paramos… Enfim”, começa por concluir, manifestando que “a maior parte dos patrões preocupa-se com os camiões e as cargas”. “Somos a peça mais fraca de todo o jogo e não querem saber de nós. As pessoas deviam dar-nos mais valor porque nós é que transportamos tudo! E cada vez somos mais explorados e sacrificados pelos patrões e os ordenados cada vez estão piores. Não fico admirada por ver tantos colegas a desistirem”.