Por Sofia Aureliano
António Costa tem medo dizer o adjetivo “absoluta” associado à maioria que pede ao país. Talvez seja porque receia evocar o pensamento de Bodin, Hobbes ou Maquiavel, levando o povo a concluir que “metade mais um” será assumido como igual à totalidade, o que é manifestamente demais. Não está enganado. Mas use ele a expressão que usar, não mascara os tiques absolutistas no exercício do poder.
Os portugueses já tiveram seis anos de experiência socialista (mais apêndices) para saber que pôr o destino do país nas mãos de António Costa é demasiado arriscado. E, garantidamente, de desfecho incerto. Porque o rumo dependerá da lista de malabarismos que forem necessários para a manutenção do poder. Esqueçam o interesse nacional ou o suprapartidário. A prática é de um “salve-se quem puder”.
Ah e tal, há um programa eleitoral para ajudar a escolher. É verdade. Um conjunto de pseudointenções. Mas é tão old school achar que isso quer dizer alguma coisa.
António Costa tinha prometido aos lisboetas, em 2013, que se ganhasse as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa cumpriria o mandato até ao fim. Em 2015, contudo, viu-se forçado a quebrar a promessa (um azar!) para salvar o PS de vitórias poucochinhas, e protagonizou um assalto ao poder que derrubou o então líder, António José Seguro. Nesse ano, já candidato, nem por poucochinho ganhou. Perdeu contra a PaF, que tanto mal alegava que fazia ao país e aos portugueses.
Devia ter compreendido a mensagem e batido retirada. Devia. Mas, ao abrigo da máxima costista do “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”, não só não se demitiu como repetiu a dose de ocupar o lugar de quem legitimamente o conquistou. Ardiloso, sim. Engenhoso, sem dúvida. Sério, é muito discutível.
Já no poder, temos promessas falhadas para todos os gostos e áreas de atuação. Aumentos salariais para todos os funcionários do Estado, computadores para os 1,2 milhões de alunos do 1º ciclo ao secundário, médico de família para todos os portugueses, novos hospitais em zonas de necessidade crítica (como o do Algarve, o do Seixal ou a Maternidade de Coimbra). Em maio de 2018, lançou a “maior obra de linha ferroviária nova dos últimos cem anos”, que antecipava a construção de 105 quilómetros de via férrea entre Évora e a fronteira do Caia. As obras deviam terminar em 2022. Estão um bocadinho atrasadas … À espera de injeção de capital da bazuca europeia, criada em resposta à pandemia que ninguém antecipava que viesse a acontecer.
Também é o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que vai financiar as cinco novas ligações transfronteiriças “absolutamente estratégicas”, de Bragança a Alcoutim. É caso para perguntar, o que seria deste governo se não fosse a pandemia?
Em fevereiro de 2016, quando o preço do petróleo desceu, António Costa aumentou o imposto sobre os combustíveis (ISP) em seis cêntimos e prometeu uma revisão regular para compensar uma previsível subida do preço. Garantiu neutralidade fiscal, para acalmar os ânimos e ir, entre protestos, enchendo os cofres públicos. O preço efetivamente voltou a aumentar, mas o imposto não desceu. O adicional do ISP foi habilmente incorporado na taxa unitária. Assim, não há mexidas. E nós, os tolos, que continuemos a pagar. Até vir agora uma pequena esmola em forma de desconto, em período eleitoral. Coincidências.
Na área política, o ainda apenas candidato a primeiro-ministro António Costa prometeu que, caso fosse eleito, o sistema eleitoral sofreria uma reforma, com a introdução de círculos uninominais para garantir uma relação mais próxima entre o eleito e o eleitor. Em 2019, o PS repetia esta promessa no programa eleitoral. Algo que sempre incomodou muito os parceiros de esquerda.
Mas não era deles que dependia a mudança. Qualquer reforma estrutural tem de envolver, por razões de estabilidade, os dois partidos de poder: PS e PSD. Os sociais democratas não viraram as costas ao tema, e Rui Rio apresentou uma proposta de reforma do sistema eleitoral como base de negociação, em julho deste ano. Não havia eleições legislativas à vista. Costa ignorou o ímpeto reformista do PSD, mesmo estando alinhado com o seu pensamento (entretanto caducado), e voltou a chutar a reflexão para canto. Aquela que era uma bandeira da sua liderança partidária foi indefinidamente arrumada na gaveta. Mais uma prova de amor à esquerda.
Reduzir a dívida pública também era uma das prioridades do governo socialista, reiterada no discurso da tomada de posse, em 2019. A meta era ficar abaixo dos 100% do Produto Interno Bruto (PIB) até 2023. Em 2020, ficou nos 133.7% do PIB, o que equivale a 270 mil milhões de euros, mais 20 mil milhões do que em 2019. É verdade que a pandemia tem responsabilidade neste aumento. Mas o PS está no governo desde 2015. Herdou uma dívida de 236 mil milhões de euros. No ano seguinte, já ia nos 245 mil milhões, e aumentou 2 mil milhões em cada um dos dois anos seguintes.
Em seis anos de governo socialista, apenas dois foram assombrados pela Covid-19. Já a dívida pública esteve seis anos a crescer, ainda que não tão expressivamente como durante o governo de José Sócrates, em que cresceu de 114,5 mil milhões em 2005 para 201,5 mil milhões em 2011 – e sabemos bem onde o desvario nos levou.
"Se uma pessoa é primeiro-ministro durante seis anos, se durante seis anos os portugueses têm a oportunidade de acompanhar e avaliar o trabalho, e se ao fim de seis anos não dão confiança ao primeiro-ministro com uma vitória eleitoral, bom, isso é manifestamente um voto de desconfiança dos portugueses no primeiro-ministro e, então, aí eu tenho de tirar as devidas conclusões e demitir-me". São palavras de António Costa, esta semana, em entrevista à CNN. Não podia estar mais de acordo. Pena é que, para este protagonista, palavra dada não tenha por hábito ser palavra honrada.
Uma coisa é certa: depois de seis anos deste banho de realidade, só cai quem quer. Ou quem for empurrado.
Para desgraças, já nos basta a pandemia.