Conheci Pedro Luis de Galvéz pela prosa de Cristobál Villalobos Salas. Pedro, o poeta anarquista que incomodou Franco, o Caudillo, até este perder as estribeiras. Em Pueblonuevo del Terrible – ninguém poderia ter inventado um nome melhor para servir de cenário aos acontecimentos –, uma terra perdida a norte de Córdova, foi apanhado pela Guardia Civil por ser considerado um perigoso revolucionário e julgado e condenado em Cádiz por um conselho de guerra. Sentença: «Reo de lesa majestad y culpable de injurias al Ejército», Fecharam-no na prisão de Ocaña.
Pedro era um poeta e os poetas não se prendem, matam-se. Durante anos tornou-se uma figura própria de uma opereta de Manuel Penella Moreno. Entrava e saía das cadeias a toques de corneta, conferindo a si próprio laivos de autoridade que ninguém lhe houvera atribuído. Outro dos escritores malditos da língua castelhana, Rafael Cansinos Assens, dizia que Gálvez era «ulcerado e bom».
Isto nos tempos em que o sevilhano Assens saltava de mesa em mesa pelos cafés de Madrid, mendigando uns «duros» àqueles que já tinham conquistado lugar na literatura e vieram a tornar-se seus amigos, como Pedro de Répide, Alberto Insúa, Armando Palacio Valdés e Ramón Gómez de la Serna e até Guillaume Apollinaire.
Todos eles velhos camaradas de Pedro e das suas excentricidades até ao dia em que este se infiltrou num grupo de criminosos, caçando como ratazanas os companheiros de estrada, traindo-os com a arma asquerosa que é a delação. Gomes de La Serna conta que o avistou por detrás de uns abajures do Café Lyon d’Or, na calle de Alcalá, vestido com um macacão de seda azul e trazendo duas pistolas à cintura. Nesse dia, cresceu dentro dele um desprezo profundo por um poeta que atraiçoara a poesia para se casar com prostitutas e aguardente.
Pouco tempo antes destes episódios, o mundo recebeu com tristeza a notícia da morte do grande Ricardo Zamora, guarda-redes dos guarda-redes, o homem das zamoranas que se fazia acompanhar por toda a parte pela boneca de trapos que usava como amuleto. Era um tempo de selvajaria total nessa Espanha de 1936.
Na verdade, ninguém sabia quem era quem e quais eram os bons e os maus. A morte campeava a torto e a direito, a imprensa francesa fez manchetes com a morte de Zamora, havia quem dissesse que pagou o preço de ser colaborador do jornal Ya, e celebraram missas em sua honra ao mesmo tempo que fuzilam outro poeta, Federico Garcia Lorca mas deixam à solta o seu Duende.
Zamora estava vivo; Zamora estava preso. Diz-se que na prisão Modelo, em Madrid, onde se encontrava, os gritos dos torturados ecoava pelas noites como gemidos de fantasmas negros. Foi lá que, segundo de La Serna, encontrou, ou foi encontrado por Pedro Luis de Gálvez.
Escreveu a história numa crónica do jornal argentino La Nación, depois de ter fugido para Buenos Aires onde os ares eram mais respiráveis. Pedro entrara em Modelo nos seus trajes tragicómicos de pirata caribenho e gritou: «Eis aqui Ricardo Zamora, o grande keeper internacional de futebol!» Depois lançou como um aviso: «É meu amigo e deu-me muitas vezes de comer. Comi muitos bifes à sua conta no Café Pombo. Está aqui preso e isso é uma injustiça. Que ninguém lhe toque sequer num cabelo. Proíbo-o!» E, em seguida abraçou o grande Zamora, beijando na cara e gritando: «Zamora! Zamora!»
Com disse, soube de Pedro Gálvez por Villalobos Salas e pelo seu livro Fútbol y Fascismo. Salas é ainda um jovem professor de História que escreve para vários jornais espanhóis com a prosódia própria dos antigos. Ricardo Zamora Martínez, que nasceu em Barcelona no dia 14 de Fevereiro de 1901 e jogou no Espanhol, no Barcelona e no Real Madrid, nunca apoiou decisivamente o nacionalismo catalão e sofreu por causa disso. Também já tinha conhecido os incómodos do cárcere quando, no regresso da Bélgica, após os Jogos Olímpicos de 1920, foi acusado de contrabandear charutos cubanos.
Em 1936, graças a Galvéz e à sua tremenda cara de pau que lhe dava poderes desconhecidos, conseguiu ser libertado e refugiar-se na Embaixada Argentina com a família. Em seguida, apanhou o vapor Tucumán e exilou-se em Marselha onde continuou a jogar futebol mesmo depois de ter perdido a elasticidade que fizera dele um mito. Acabaria por ser condecorado pelo próprio Francisco Franco.
Pedro Luis de Galvéz foi fuzilado a 30 de Abril de 1940, tanto pelos crimes que praticou como por aqueles que, pura e simplesmente, inventou. Tinha escrito num poema: «Bebo para esquecer… Sempre a garra/da calúnia no pescoço, sem fortuna/morta a fé sem qualquer ilusão/e na mão, uma bala, como Larra…» Os tiros que levou não destruíram a fotografia que trazia no bolso. Estava autografada por Zamora: «A Pedro, o único homem que me beijou na prisão».