Por Sofia Aureliano
“2022 tem de ser o ano de virar a página”. A frase é do Presidente da República, na tradicional mensagem de Ano Novo. Marcelo Rebelo de Sousa deixou várias mensagens objetivas e explícitas e outras tantas nas entrelinhas. Em poucas palavras, lançou cirurgicamente o desafio para várias reflexões. Para bom entendedor, meia palavra basta.
É verdade que a página da pandemia é, neste momento, uma das mais condicionantes no dia-a-dia dos portugueses. É o fenómeno que mais implicações tem no nosso bem-estar e na nossa qualidade de vida. Diretamente. Mas existem muitos outros problemas que o fim da pandemia não fará terminar. São crónicos, estruturais, profundos. E virar a página também implica resolvê-los.
1. A potencialmente iminente crise da democracia.
O nosso sistema democrático tem vários desafios pela frente para evitar uma crise a curto ou médio prazo (que será efetiva se tudo continuar como está). A ascensão dos movimentos populistas, a corrupção, a falta de transparência, a ineficiência do Estado, a crise de representação e a consequente fraca participação cívica e eleitoral são os alguns desses problemas.
Curiosamente, no discurso populista de André Ventura, todos estes temas são elencados como causa do mau estado da nação. Todos, menos a ascensão do próprio partido, que em momento algum é assumido como um sintoma claro do descontentamento popular em relação ao status quo. Quando, na verdade, não é mais do que isso: um coletivo de descontentes, uma agregação de desalento e de desânimo. O que significa que a não resolução dos restantes problemas levará ao crescimento daquela que é a maior ameaça para o estado democrático.
Nos dois debates quinzenais de André Ventura, contra Catarina Martins e contra Rui Rio, o líder do Chega não variou muito o guião. O que é estranho, uma vez que o Bloco de Esquerda será o arquinimigo por excelência, situando-se no polo oposto, e o PSD é o putativo amigo com quem o Chega gostava de governar. Esperar-se-ia que a abordagem variasse no frente a frente contra os dois protagonistas. E, provavelmente, Ventura até tinha preparado discursos diferentes. Mas as primeiras palavras de Rui Rio foram um murro no estômago e deitaram por terra as ilusões governativas de Ventura. E este, qual menino mimado a fazer birra, respondeu agravando prontamente as hostilidades e sacando o discurso mais inflamado. Aquele que estava reservado, até então, para a esquerda. Daí que a invariável agressividade de Ventura nos dois embates tenha parecido desconforme e, nalguns momentos, até gratuita.
2. O único voto útil.
No fim do debate entre Rio e Ventura retiramos uma importante conclusão: um governo de centro direita dependerá inteiramente da vontade dos portugueses e o voto útil, aquele que irá virar a página da atual governação socialista com apêndices ocasionais à esquerda, materilizar-se-á apenas num único partido, o PSD. Um voto de descontentamento no Chega não terá consequências úteis de “abanão necessário”, porque levará a um inevitável estado de ingovernabilidade, de que ninguém beneficiará. Certamente, não os portugueses.
Rui Rio foi claro: não está disposto a tudo para ser primeiro-ministro. E uma coligação com o Chega, um assumido (e reiterado por Ventura) partido contra-regime, é um preço demasiado elevado a pagar. Para ter esta certeza, já valeu a pena o debate. Até porque de Rui Rio, ao contrário do que acontece com António Costa, os portugueses não devem esperar malabarismos de retórica. O que é dito hoje, amanhã também será válido.
3. A fraca saúde dos pilares democráticos.
Um estado democrático saudável precisa de ter os seus pilares bem cuidados. A Saúde, a Educação (a ambos já foram dedicados artigos individuais neste espaço, não pelas melhores razões), a Justiça e a Solidariedade têm de ser preservados, salvaguardados e alimentados, para garantir o livre e universal acesso dos cidadãos e a justa promoção do bem-estar social. Hoje, estes pilares estão enfermos, malnutridos e a precisar de reformas efetivas que os tornem mais eficientes e resilientes, de forma estrutural.
Não podemos eleger continuamente políticas de remendo, limitadas na ação, no tempo e no espaço. É preciso escolher quem nos garanta uma aboragem coerente, holística e estável, capaz de perdurar para além das conjunturas e arranjos políticos.
Por isso, os partidos deviam ser avaliados pelas estratégias de longo prazo que apresentam para estas áreas. Pela sua visão de futuro e não por aquilo que se comprometem a fazer no período de, no máximo, quatro anos. Sempre a troco de mais anos no poder.
Falar em décadas não é, contudo, uma postura prudente. É arriscada, por poder ser considerada arrogante e demasiado ambiciosa. Daí que seja prática incomum. O que é uma pena, porque é desapegada. E demonstraria a coragem e a determinação necessárias para fazer diferente, de forma idónea. Sem medos de ser castigado por isso.
4. Ambição europeia.
Há décadas que Portugal ambiciona a convergência com a União Europeia. É já uma frase padrão no guião de qualquer partido de governo. E uma aspiração consensual e legítima, desde que somos estado-membro. Mas a convergência que ambicionamos não é aquela que é recorrente no discurso de António Costa. É a efetiva. A que nos permite comprarar níveis e qualidade de vida com os restantes cidadãos europeus: o que ganhamos, o que gastamos e qual o peso dos requisitos médios para o nosso bem-estar no nosso rendimento global.
A equação é simples: Quanto nos custa ter o que os outros cidadãos europeus têm? Hoje sabemos que pagamos acima da média. O que significa que recebemos abaixo das nossas aspirações e expectativas. E, obviamente, aquém da narrativa do governo. Esta não pode ser uma constatação pacífica.
Não nos pode bastar o título de membro do projeto europeu se isso significar estar sempre no fim da linha, no top 10 dos que menos significam e contribuem para o progresso do todo. São muitos anos a contentar-nos com esta versão inacabada e “poucochinha” de nós mesmos, de quem se satisfaz com andar sempre à boleia, à mingua e à pendura.
Para sermos melhores temos de mudar. E para mudarmos temos de observar os erros, assumi-los e ser mais exigentes. Connosco e com quem nos governa.
Falta-nos, muitas vezes, a audácia de ambicionar e a intrepidez da exigência.
Mas, sem coragem, nunca viraremos a página.