Talvez nunca ninguém tivesse imaginado que, algum dia, a cerimónia dos Globos de Ouro – evento que honra todos os anos desde 1944, os melhores profissionais e obras de cinema e televisão – ocorresse dentro de portas fechadas.
A verdade é que muitos esperam ansiosos pelo “grande” momento, tão conhecido por “invadir” as televisões em todos os recantos do mundo, com o glamour presente nos “trajes” escolhidos pelas caras mais conhecidas de Hollywood e por emocionar com os habituais discursos dos galardoados. Estamos, por isso, habituados a emocionar-nos, a comentar e até mesmo apostar em quais serão os vencedores do que melhor se fez na sétima arte em cada ano.
Contudo, estes últimos tempos têm sido marcados por “surpresas” que nos têm provado que o inesperado pode acontecer a qualquer momento, sem que estejamos preparados. E, se no ano passado a cerimónia decorreu da maneira habitual, com a diferença de que esta foi realizada também virtualmente, este ano nem isso aconteceu. Há quem responsabilize a “cultura do cancelamento”, o “politicamente correto” e a “procura por uma falsa inclusão”.
Por outro lado, a maioria, vê-lo talvez como “um castigo” para a organização – acusada de “corrupção” e falta de “inclusão e diversidade” – tal como é o caso de todos os nomeados para o troféu que não aceitaram o convite para a cerimónia.
Uma cerimónia “diferente” A consequência foi que a 79.º edição da cerimónia dos Globos de Ouro, acabou por revelar, este ano, a crise de prestígio e credibilidade do prémio americano que distingue as melhores obras e artistas de cinema e televisão.
Encurralada após um ano que “fez correr muita tinta”, a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA, na sigla original), transformou este que é um dos prémios mais reconhecidos da indústria cinematográfica num evento privado. Não houve tapete vermelho, os indicados e as celebridades “voltaram-lhe as costas”, apenas meia dúzia de pessoas testemunhou a premiação – que não teve “direito” a transmissão nem na televisão, nem na internet como é usual – e esta decorreu ainda sem a imprensa que em 2021 denunciou “a sua falta de diversidade e lançou suspeitas sobre as suas finanças e falhas éticas na atribuição dos galardões”. Uma “reformulação de organização” que, nas palavras da Associação, “reconheceu a excelência no cinema e na televisão durante 79 anos e continuará a fazê-lo por muitos mais”.
Esta semana a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood já havia anunciado que a 79.º edição dos Globos de Ouro aconteceria num hotel em Beverly Hills, apenas com alguns convidados, já que nenhuma celebridade aceitou o convite e até a estação NBC se recusou a transmitir o evento.
Porquê? Tudo isto ocorreu, graças à investigação do jornal Los Angeles Times que, em fevereiro do ano passado, revelou a maneira como os membros da imprensa estrangeira de Hollywood seriam “subornáveis” aos favores e convites luxuosos dos estúdios e produtoras que depois se transformavam em nomeações, assim como as suas finanças pouco claras. Desde esse momento, começaram a ressoar os primeiros sinais de que a “normalidade” da cerimónia cairia “por terra”.
Não foi preciso muito tempo até que a Associação perdesse aquela que tem sido a estação televisiva responsável pela transmissão da gala, anos após ano – a NBC. A 10 de maio de 2021, a estação televisiva, anunciou que não iria, como habitualmente, transmitir ao vivo a cerimónia. Este domingo, ao invés da cerimónia de entrega de prémios, o canal transmitiu um jogo do campeonato americano de futebol.
No entanto, abriu a possibilidade de retomar em 2023 a transmissão do evento caso algumas reformas tenham sido entretanto realizadas, entre elas a correção do seu pobre currículo no que toca à diversidade, não só nos galardões e nomeações mas também na sua constituição – até ao ano passado, a Associação tinha zero membros negros no total dos seus 87 membros.
Este alerta, levou-a a passar por uma remodelação ainda no último ano, com a admissão de 21 novos jornalistas, seis dos quais negros, dez mulheres, cinco asiáticos, quatro de origem norte-africana ou do Médio Oriente e seis de origem latina.
Assim, as imagens estáticas do anúncio dos vencedores dos Globos de Ouro 2022, divulgadas apenas nas redes sociais e na página da internet da própria HFPA, ficaram para a história da cerimónia que foi boicotada pela esmagadora maioria da comunidade de criadores de cinema e televisão nos EUA e os prémios foram entregues por líderes de várias organizações da sociedade civil que receberam apoio financeiro da Associação. Apesar do “grande vazio”, no evento, terá participado Kyle Bowser, vice-presidente do ramo de Hollywood da organização anti-racista National Association for the Advancement of Colored People (NAACP).
Alguns dos vencedores Mas a edição deste ano não foi marcada apenas pela forma pouco “tradicional” do evento. O ano 2022, ficará também marcado pela entrega do prémio de Melhor Atriz numa série dramática, pela primeira vez, a uma mulher trans, a atriz Michaela Jaé Rodriguez, pelo seu papel em Pose – título da série que retrata a cidade de Nova Iorque de 1980, época marcada pela ascensão da cultura de luxo e arranque dos bailes LGBTQI+, que terminou na terceira temporada.
O sucesso coreano da Netflix, Squid Game, deu a O Yeong-su o Globo para Melhor Ator Secundário em televisão. Contudo, foi Succession, da HBO Max, a produção que sobressaiu na contagem de prémios, com a conquista de três Globos: Melhor Ator em série dramática para Jeremy Strong, Melhor Atriz Secundária para Sarah Snook e, ainda, Melhor Série Dramática.
A mesma plataforma de streaming “triunfou” nas categorias de comédia com a série Hacks, sobre o confronto de gerações entre um comediante veterano e um jovem escritor que é obrigado a escrever piadas. Jean Smart levou o prémio de Melhor Ator nesta categoria, enquanto Kate Winslet venceu enquanto Melhor Atriz em Minissérie com Mare of Eastown.
Quanto a filmes, O Poder do Cão, da plataforma de streaming, Netflix, conquistou o Globo para Melhor Filme Dramático, deu o Globo de Melhor Realização a Jane Campion, tornando-a na segunda realizadora a receber o prémio na história dos Globos – a cineasta neo-zelandesa já havia sido pioneira quando foi a primeira realizadora a receber a Palma de Ouro em Cannes – e o de Melhor Ator Secundário em filme a Kodi Smith-McPhee.
Já a versão de Steven Spielberg de, West Side Story, também não passou despercebida e arrecadou três Globos de Ouro. Neste caso, na categoria de musicais – onde conquistou Melhor Filme Musical ou Comédia, Melhor Atriz em Filme Musical ou Comédia, com Rachel Zegler e entregou o prémio de Melhor Atriz Secundária em Filme a Ariana DeBose.
Nicole Kidman, por sua vez, tornou-se na atriz mais premiada da história dos Globos de Ouro, depois de receber o seu quinto prémio em 17 indicações ao longo da sua carreira, este ano pela sua interpretação da popular comediante de televisão Lucille Ball em Being The Ricardos. O prémio de Melhor Ator também foi para outra atuação num filme biográfico: Will Smith ganhou o troféu por dar vida a Richard Williams, pai dos tenistas Venus e Serena Williams, no filme Para Além do Jogo. The Underground Railroad, de Barry Jenkins, foi considerada a Melhor Série Limitada, e o Melhor Filme de Animação foi Encanto. O Japão teve o Globo de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa por Drive My Car.
A verdade é que, depois de terem sido anunciados, quase que fica a sensação de que nada de passou. E, ao contrário do que se poderia pensar, devido à onda de críticas em que a Associação se “afundou” ao longo dos últimos meses, não houve grande comoção ou protestos nas redes sociais durante a noite do anúncio.
No Twitter, onde os vencedores foram também anunciados, os comentários dos internautas limitaram-se às discussões habituais sobre as apostas dos nomeados a vencedores e poucos foram aqueles que lembravam as polémicas que “ameaçavam” a cerimónia.
Por outro lado, as celebridades de Hollywood não teceram comentários, nem de agradecimento, nem de descontentamento. Nem mesmo os premiados do ano.
Jamie Lee Curtis e Arnold Schwarzenegger foram duas das poucas vozes a mostrar apoio público à Associação. A atriz norte-americana que já coleciona sete globos de ouro, participou na cerimónia com um pequeno vídeo, onde disse ter “orgulho de estar associada à HFPA”, que faz “um trabalho filantrópico de forma muito discreta e subtil”. Já o protagonista do famoso filme Exterminador Implacável, mostrou o seu apoio anunciando o prémio de Melhor Filme de Drama.