Por João Maurício Brás
Em França sobreviveu uma herança marxista que é das poucas que continua a pensar as mutações do capitalismo. Homens como Clouscard e Debray viram no Maio 68 a primeira contrarrevolução liberal libertária, e no progressismo, deformação do progresso, uma estratégia liberal.
Questionar o capitalismo não consiste em desconsiderar a sua dimensão fundamental no desenvolvimento das sociedades, mas referir a sua versão amoral e de corso, típico do liberalismo libertário deste tempo, da liberdade individual irrestrita e da mercantilização de tudo.
Clouscard, que escreveu Neo-fascisme et la Ideologie du Désir, guiou-me entre outros, no meu mais recente livro, Os novos Bárbaros. A Moral de supermercado é um autor estimulante na crítica ao hiperliberalismo progressista. Veja-se por, por exemplo, a ideia que a verdadeira emancipação significa ter um trabalho digno, respeitar os direitos laborais e criar as condições adequadas de vida para uma sociedade decente e não ser apenas o grito de uma qualquer monomania tribal ou oligopólio disfarçado de mercado que se autorregula. Clouscard vê também na fantochada do somos livres para tudo, apenas a redução mercantilista da vida. Com o selo da liberdade tudo se torna mercadoria: crianças, úteros, esperma, corpos, etc….
Este sistema liberal do século XXI cria os problemas e só ele se apresenta como o que pode oferecer a solução. Por exemplo, gera os problemas ambientais e oferece a versão possível da contestação a si próprio, cria as terríveis crises económicas com o respetivo desemprego, precarização e endividamento, e oferece mais crédito, mas também a autoridade virtuosa, cria um humano atomizado, neurótico e desorientado e oferece a profusão de terapias psicológicas e as pseudoespiritualidades e o charlatanismo alternativo da cura. Criou o wokismo de esquerda e despoletou as direitas alternativas e radicais, tudo sintomas do mesmo problema e dos novos fascismos.
Já não conseguimos conceber um outro mundo fora do próprio sistema que nos fornece todas as alternativas possíveis, até os próprios antagonismos mais radicais são produções desse sistema, ou quanto muito as suas excrescências, como é o caso dos Trumps, dos Bolsonaros, e dos ismos e das suas pulsões libertárias e das extremas esquerda e direita pós-modernas.
Até a democracia foi arrasada por esta ideia, vivemos apenas na democracia-mercado. Da atividade do mercado decorrem todos os conceitos da economia, oferta e procura, as várias práticas, teorias e regras da produção e do consumo, dos preços, do valor, etc.. Mas nem tudo na existência humana, nem sequer o mais importante é passível de preço, de valor, de trocas, de oferta e procura. Conceber todas as dimensões da nossa vida a partir da economia e considerando o mercado como o núcleo das conceções sobre o que deve ser a existência, é deformador, conceber a vida a partir de uma ideia específica como deve funcionar o mercado e a economia, baseada no interesse particular ou no predomínio dos grupos mais astutos para o negócio é sinistro.
O Nobel liberal de economia Gary Becker conseguiu mesmo reduzir tudo a uma visão económica. Por exemplo, até um casamento e a família resultariam de uma escolha racional por parte de indivíduos que procuram, entre os disponíveis no mercado de casamento, um outro individuo que melhor maximizasse a sua utilidade.