Depois de assistirmos a dezenas de debates políticos em que não se conseguiu extrair uma ideia clara ou uma visão de futuro para o país, já muitos vaticinavam que a fraca capacidade oratória dos protagonistas, a desadequação do formato televisivo à proliferação da dialética, a ausência de matriz ideológica ou a escassez de moderação não permitiam a realização de debates com conteúdo. Tudo estaria destinado a fluir como não devia. Em suma, demos como adquirida a decadência da retórica e a consequente falência da classe política. Também eu deduzi hipóteses similares. Também eu assumi a primazia do tittynaiment – na verdadeira aceção do conceito avançado por Brzezinski – sobre o real direito de ser informado. E estava (parcialmente) errada.
1. Efetivamente, a maioria dos debates foi uma caça ao page view, aos likes automáticos e à partilha por impulso, recheados de hostilidade e polarização, muitas vezes forçada. Foi feita a apologia do estereótipo, o culto do antagonismo e seguiu-se a linha fácil e levezinha do entretenimento. “A política pode dar share”. Foi a grande máxima. Mas já houve quem quebrasse o fado.
O debate entre dois putativos parceiros de um governo de centro direita, Rui Rio e João Cotrim Figueiredo, veio demonstrar que, afinal, é possível expor ideias e até estabelecer primeiras bases de consenso no atual formato de frente-a-frente. Este encontro, que de agressividade e colisão não teve nada, serviu para lançar a primeira pedra de uma ponte de entendimento entre dois partidos que poderão vir a governar Portugal, nos próximos anos. Sem medos de ceder votos ao adversário e conscientes do papel de cada um no xadrez eleitoral, evidenciaram uma luz ao fundo do túnel demonstrando que um acordo entre ambos, para além de provável, tem potencial para gerar bons frutos para o país. Sem tons exaltados nem acusações gratuitas, sem utilização excessiva de soundbites nem exageros de oralidade, houve tempo para dar aos telespectadores o que eles procuram: ideias. Sem cair na armadilha fácil de hostilizar quem pensa diferente ou se demitirem de evidenciar aquilo que separa os dois partidos. Não pensam da mesma forma. Mas podem entender-se. Finalmente, tornou-se óbvia a alternativa.
2. Eleições vs. Covid-19.
Estima-se que, a 30 de janeiro, serão muitos os milhares de pessoas em isolamento profilático e, de acordo com o enquadramento legal atualmente em vigor, impedidos de exercer o direito de voto. O Presidente da República veio alertar para a necessidade de reflexão sobre o tema, colocando até em cima da mesa a hipótese de se concretizar um “retoque legislativo” para permitir que os infetados com Covid-19 possam ir votar. A discussão é interessante e a preocupação com a necessidade de garantir o exercício deste direito à maioria de cidadãos é pertinente. Já se avançaram com várias ideias para resolver o problema, como a criação de um intervalo horário exclusivo para os infetados se deslocarem às urnas, com uma autorização excecional para que possam sair de casa.
Sobre esta solução interessa aferir qual seria o impacto que teria nos eleitores que pretendem votar e não estão infetados. Acharão estes que é seguro ir votar? Pode ser-lhes dada essa garantia? São eles a maioria, e qualquer retração da sua ida às urnas teria um efeito perverso.
Do ponto de vista da Saúde Pública, haveria ainda necessidade de garantir total segurança nos meios de transporte em que as pessoas em isolamento se deslocassem para aceder às urnas. Os contágios não podem ser entendidos como danos colaterais legítimos, incontroláveis ou necessários.
Faltam 18 dias para o ato eleitoral e o governo, a quem cabe desencadear todo o processo legislativo e logístico para a adoção de uma solução, ainda não se manifestou. Deu conta de estar a pensar sobre o tema. Corremos o risco de que o tempo seja novamente usado como bode expiatório. Ou a ausência dele. E que quando se decidir agir, já seja tarde para implementar as alterações necessárias.
Espero que a demora tenha a ver com o estudo de opções alternativas, olhando, por exemplo, para o que já se fez noutros países. A vantagem de estarmos perante uma pandemia à escala mundial é que não temos de inventar a roda sozinhos. Muitas práticas já foram estudadas, experimentadas e há lições a tirar.
O International Institute for Democracy and Electoral Assistance compila num estudo (aqui) várias soluções encontradas para votar em contexto de pandemia. Destaco duas que me parecem mais exequíveis em Portugal.
A primeira é a criação de secções de voto especiais só para infetados que aposta em delimitar os espaços em vez de o período horário de votação. Criando algumas destas unidades especiais por distrito estaria a ser oferecida uma alternativa para os cidadãos em isolamento que pretendem ir votar. As deslocações, contudo, poderiam manter-se um problema. Assim como garantir a proteção dos que trabalham nas mesas de voto.
A segunda solução é, de longe, a mais segura: o voto por correspondência. Durante a pandemia, foram 16 os países que o possibilitaram. Nos Estados Unidos, 41% dos eleitores optou por votar assim em 2020.
Em Portugal, já está consagrado esse direito para os eleitores não residentes no país. O “retoque legislativo” poderia passar por estender essa possibilidade, com caráter excecional (numa fase imediata), aos eleitores residentes que se encontrem em isolamento profilático devidamente autenticado pela DGS.
Sem aprofundar a reflexão, parece-me consensual que é preferível demorar mais tempo na contagem de votos do que sobrecarregar os hospitais.