É cada vez mais comum vermos o jornalismo a “perder” contra o entretenimento. Ora se misturam, ora “bebem” um no outro, às vezes com os olhos postos em interesses ou intenções pouco claros. Vemos também, cada vez mais, a publicidade a “colar-se” a determinados conteúdos que já não conseguem viver sem ela. Segundo muitos especialistas, o fenómeno do infotainment – expressão que designa as mensagens mediáticas que integram elementos de caráter jornalístico e de entretenimento – parou de crescer e apresenta-se agora “enraizado na sociedade”. Já é difícil ver um filme sem que este nos sugira marcas, é complicado assistir a telenovelas sem que estas nos apresentem os seus “sumos preferidos”. Mas e se, a meio de um telejornal, os espetadores fossem surpreendidos com um convidado que responde a uma pergunta com uma música? Se uns veem esse como um momento original de televisão ou mesmo um “golpe de mestre”, outros receiam estar perante mais um “atentado à informação jornalística”, em que esta se mistura com entretenimento.
O regresso polémico de Stromae O caso em concreto aconteceu em França. “Após sete anos de ausência”, antecipou do canal de televisão francês TF1, o cantor e compositor belga Paul Van Haver, mais conhecido pelo seu nome artístico Stromae e, entre outros temas, pela canção ‘Papaoutai’, sentou-se diante das câmaras de televisão no espaço informativo Le20H, no passado domingo. Foi à jornalista Anne-Claire Coudray que o artista deu a primeira entrevista depois do seu regresso, a pouco tempo de lançar o seu novo álbum intitulado Multitude, em março de 2022.
Filho de mãe belga e pai ruandês, o cantor de 36 anos decidiu retirar-se da música, em 2016, por questões relacionadas com a sua saúde mental, mantendo apenas algumas colaborações pontuais e focando-se na sua marca de moda e decoração. Desde 2013 que não editava um disco e a sua ausência artística foi uma das questões que abordou. “As pessoas, muitas vezes, definem a minha música como divertida com temas mais sombrios, mais tristes. E acho que é mesmo assim que vejo a vida, ela não é completamente branca, nem completamente preta. Há momentos mais tristes, momentos mais felizes… É sempre alternada, não existem altos sem baixos, ou baixos sem altos. É assim a vida”, afirmou a dada altura o cantor belga.
Mas, aquela que poderia ter sido uma entrevista habitual, como parecia nos primeiros sete minutos, tornou-se, logo após a sua transmissão, num “tsunami” que causou uma grande agitação mediática em torno do seu passado – marcado por problemas da saúde mental – e ainda, num “ringue” onde uns o consideram um “génio” e outros apontam o dedo ao canal de televisão, por lhe ter dado espaço, num programa de informação jornalística. Stromae filmou o videoclip daquele que é o seu segundo single do novo álbum, ‘L’enfer’ (Inferno) em direto, respondendo à última questão da jornalista em música. “Lutaste durante sete anos contra a infelicidade… Falas sobre isso sem rodeios e as tuas músicas também nos falam muito sobre solidão. A música ajudou-te a libertares-te?”, pergunta Anne-Claire Coudray. Stromae hesitou por um segundo antes de responder (embora a resposta já estivesse mais do que pensada). Mantendo o olhar fixo na apresentadora, o artista, vestido com fato escuro e gravata que poderia muito bem passar por pivot, começou por cantar: “Eu não estou sozinho em me sentir sozinho/ E isso já é alguma coisa”, começa por cantar. Rapidamente fixou os olhos na câmara como se se dirigisse à própria solidão ou a todos aqueles que, como ele, já se sentiram sozinhos: “E se eu contasse quantos somos /Seríamos muitos/ Tudo isto em que eu já pensei/ É uma loucura quantas pessoas já pensaram o mesmo/ Mas infelizmente isso não me ajuda a sentir menos sozinho/ Na verdade eu já tive pensamentos suicidas algumas vezes/ E não me orgulho disso”, admite diante dos holofotes, acrescentando que às vezes pensou que essa seria a “única maneira de silenciar todos os pensamentos que o colocaram no inferno”.
No final do “momento musical”, o programa regressa aos modos “habituais” e Coudray agradece ao belga por lhes ter dado esse “presente”, cuja letra se refere a esse “negro pensamento” que ocupa a cabeça de muitos, em todos os cantos do mundo.
“Um momento que será sempre inesquecível para mim. E, diante da avalanche de mensagens, não serei a única”, escreveu a própria apresentadora do espaço no seu Twitter, depois de perceber o quão a performance se tornou viral – o vídeo já conta com quase quatro milhões de visualizações no Youtube. Contudo, nem toda a gente recebeu o acontecimento dessa maneira.
Um “atentado” ao jornalismo O belga que tem um talento especial para “transformar espaços e conceitos”, tal como mostrou no single ‘Papaoutai’, uma música lançada em 2013 com um ritmo de “festa”, mas com uma letra carregada de angústia – já que fala sobre a ausência do seu pai, um ruandês assassinado no genocídio que devastou aquele país africano em 1994 – transformou agora, aos olhos de muitos, um telejornal, num “palco promocional”, por mais que seja unânime que este tenha aberto um debate sobre a saúde mental, em concreto sobre o suicídio (tema muitas vezes difícil de ser veiculado nos meios de comunicação).
“Devíamos assistir ao telejornal das oito apresentado por um profissional com carteira de jornalista (…) Mas de repente, tudo se confunde. Não existe distinção entre o espaço noticioso, sujeito àquela velha teimosia chamada ética jornalística, e o espaço do videoclipe”, crítica uma coluna do semanário francês L’Obs, intitulada “Stromae: inferno de misturar géneros”. “Após cerca de sete minutos, a ‘máquina’ descarrilou. De uma forma completamente imprevisível e aberrante (…). O cantor começa uma música incongruente e já não estamos no noticiário da televisão, somos transportados para um filme de Jacques Demy! Quase que esperamos que Anne-Claire Coudray salte para cima da mesa e comece uma pequena coreografia”, lê-se ainda no artigo redigido pelos escritores franceses Sophie Delassein e Arnaud Gonzague.
O “enraizamento” do infotainment “Este caso sobre o artista belga problematiza sobre uma situação que tem suscitado a atenção de profissionais e de académicos que caracteriza a cultura contemporânea e o sistema global de média – o infotainment”, começa por explicar ao i Nuno de Brito, professor de Media e Sociedade na Universidade Autónoma de Lisboa e investigador na Universidade Nova de Lisboa. O conceito de infotainment designa “uma junção por aglutinação de dois termos ou dimensões da produção cultural: informação vs entretenimento”, continua. “O que se observa atualmente é uma tendência para a produção ou para o consumo, numa relação de oferta e procura, de conteúdos e formatos mediáticos que misturam estes dois mundos. E por vezes as fronteiras são inexistentes, pouco definidas ou impercetíveis”, explica o especialista, acrescentando que esta ausência de fronteiras “é uma característica da cultura contemporânea” e que está “fortemente relacionada com ideologias neoliberais, nas dimensões política, económica e cultural”.
Já para Isabel Damásio, jornalista, professora e investigadora na área do infotainment, “é sempre difícil falar sobre um caso concreto”. “Tem acontecido muito, em Portugal inclusive, aparecerem figuras ligadas ao entretenimento nos telejornais a fazer determinado tipo de comentários, até comentários políticos. Há também o caso de aparecerem pessoas ligadas à música, ou mesmo cantores, a fazerem o fecho dos telejornais. Isto quando são lançadas músicas, ou discos”, explica ao i a especialista. Contudo, há, no seu entender, uma questão que nos ultrapassa “a todos”: as estratégias de marketing para vender produtos. “O jornalismo também se deixou enredar um pouco por elas, porque a falta de capacidade económica, muitas vezes, faz com que se vendam muitos produtos dentro dos telejornais. Isto é proibido por lei. Os telejornais não devem ter produtos patrocinados dentro deles – pelo menos aqui em Portugal é assim que funciona – mas isso acontece”, revela. Segundo Isabel Damásio, hoje em dia, já ninguém se inibe de mostrar os nomes dos restaurantes, hotéis e imobiliárias. “Não digo que haja sempre pagamentos, mas imagino que no setor privado isso possa acontecer”, sublinha.
A investigadora lembra o caso de 2001, em que a socialite Lili Caneças, “abriu” todos telejornais nacionais, mostrando a sua nova cirurgia. “Foi muito polémico na altura. Os telejornais a abrirem com uma notícia sobre uma cirurgia? Mas porque é que se abre o telejornal com uma notícia da Lili Caneças? Falava-se sobre a própria clínica ter pago a publicidade que teve ali”, comparou.
No caso de Stromae, reflete, a estação de televisão pode estar a querer “promover o artista”, ou então, pode ter sido “algo espontâneo”. “Se ele lá foi pelo facto de ter estado desaparecido, ter um novo single, isso pode ser notícia! Sim! Agora, se a pessoa foi convidada e faz isso de espontânea vontade, é condenável. No caso de ser uma ‘promoção’, é uma coisa que acontece”, frisa Isabel Damásio. Segundo a especialista, neste momento, por força da forma como comunicamos e da forma como o ambiente de comunicação evoluiu, “a informação jornalística e o entretenimento estão completamente misturados”. “Não há conteúdos genuínos, ou seja, não há conteúdos exclusivamente de informação jornalística, assim como não há conteúdos exclusivamente de entretenimento”, elucida, adiantando que “o entretenimento vai buscar muitos mais conteúdos ao jornalismo – para depois transformar e desconstruir no campo do entretenimento – do que propriamente o jornalismo vai ao entretenimento buscar esses conteúdos”. Considera o infotainment “uma estratégia que pode ser aplicada a qualquer produto ou programa, em qualquer género e, a informação jornalística acaba por sair prejudicada”.
Para Nuno de Brito, a ideia de confusão destas fronteiras pode levantar ainda “questões acerca da sanidade mental, pois muitas doenças e problemas desse foro estão associados a esta confusão entre ficção e realidade, ou à falta de fronteiras entre vários elementos ou dimensões”. Segundo o investigador, os sistemas globais de media caracterizam-se atualmente por processos de produção que vão “ao encontro das características das audiências”, logo, a lógica de mercado “impera”. “Muitas vezes a falta de regulação de políticas de atuação das empresas de media podem criar uma espécie de selva onde vale tudo para conquistar audiências e captar a atenção do público. Nomeadamente na criação de formatos que promovem essa confusão, muitas vezes sensacionalistas, tal como os talk shows, reality shows ou filmes que misturam a realidade a ficção”, exemplifica. Graças a isso, defende, assiste-se hoje a “formatos híbridos”, onde não conseguimos distinguir informação do entretenimento, bem como à prevalência de uma espécie de ‘soft journalism’.
Além disso, de acordo com Nuno Brito, os novos dispositivos eletrónicos, as tecnologias de informação e comunicação e as possibilidades de partilhar informação no contexto de uma sociedade ligada em rede, através da internet, tem vindo “a permitir alterações profundas no consumo e dietas mediáticas”. “Atualmente os consumidores misturam as linguagens e os conteúdos. Vivemos numa espécie de cultura do DJ onde os conteúdos são misturados e manipulados. Uma espécie de empowerment que é permitido pela tecnologia”, remata.
De uma rede de fast-food a um sucesso na música De seu nome verdadeiro Paul Van Haver, o cantor nasceu em 1985 em Bruxelas, Bélgica. Começou a interessar-se por música aos 11 anos de idade e sete anos depois juntou-se ao rapper J.E.D.I. para formar a dupla Suspicion. Não demorou muito até que decidisse enredar por uma carreira a solo. Em 2000, o então rapper “Opmaestro” mudou de nome para Stromae (versão invertida da palavra “maestro”). Enquanto trabalhava numa rede de fast-food e estudava na escola de cinema L’Institut National de Radioélectricité et Cinématographie, em 2007, lançou o EP Juste un Cerveau, un Flow, un Fond et un Mic, com 4 faixas, e ainda compôs para outros artistas, como foi o caso das quatro canções para o álbum À L’Ombre du Show Business do também rapper francês Kery James – disco de ouro na França por mais de 75 mil cópias vendidas em 2008.
Depois disso, conseguiu um contrato de quatro anos com as gravadoras Because Music e Kilomaître e começou a estagiar na rádio NRJ, em Bruxelas. Vincent Verbelen, um manager da estação, ficou impressionado com o seu talento na canção Alors on danse, que lançou em 2009, e decidiu pô-lo a tocar pela primeira vez na rádio. O seu nome rapidamente explodiu. Em maio de 2010, a Alors on danse chegou a primeiro lugar como a música mais tocada na Bélgica, França, Roménia, Holanda, Grécia, Alemanha, Áustria, Turquia, Suíça, Itália, Dinamarca e República Checa.
Em 2013, lança finalmente o seu álbum a solo, Racine Carrée, e conquista o público, mais uma vez, precisamente com a canção ‘Papaoutai’ – canção que retrata a falta da figura paterna na vida de uma criança e a busca pelas suas origens. Desde esse momento, até agora (lançamento do segundo álbum) o cantor tem trabalhado em algumas colaborações. Fez vocais na música do rapper francês Orelsan, ‘La Pluie’, e ainda na música ‘Arabesque’ dos Coldplay. Em 2018, Stromae realizou o videoclipe IDGAF da cantora Dua Lipa e, paralelamente, gere a sua própria marca de roupa.
O primeiro single do disco Multitude, o tema ‘Santé’ (Saúde), foi revelado em outubro de 2021 e conta com mais de 25 milhões de visualizações no Youtube. Na entrevista ao Le20H, o cantor belga explicou ainda o significado do nome do álbum: “Acho que somos todos múltiplos, somos muitas personagens e possuímos muitas personalidades diferentes. Não se resume tudo a uma ‘camisa de forças’, ou uma ‘caixa’”.
Inspirado na sua vida, nas suas viagens e na sua diversidade, o intérprete promete “diferentes grooves”. “Adoro misturar as coisas. A ideia é realmente levar inspiração a todos os lugares sem apontar o dedo a um país”, acrescentou.
Stromae, que é também visto como um dos nomes mais sonantes da eletrónica europeia, vai atuar no NOS Alive a 6 de julho.