Boris Johnson, considerado uma figura a que nenhum escândalo se colava, ora sacudindo-os com um simples encolher de ombros, ora mudando de assunto com mais uma gaffe pitoresca, está a acusar o desgaste. Após sucessivas polémicas, há cada vez mais apelos à demissão do primeiro-ministro britânico, vindos até de deputados do seu próprio partido.
Surpreendentemente, não foram as acusações de má gestão da pandemia, a hesitação em impor o confinamento ou o rescaldo do Brexit que feriu a popularidade de Johnson. O problema foi a descoberta de sucessivas festas no n.º 10 de Downing Street, enquanto o resto dos britânicos estava confinado por ordem do Governo. Desde dezembro que as notícias vão pingando – primeiro sobre uma festa de Natal em 2020, depois a foto de um convívio no jardim, em maio desse ano – e sempre com Johnson a negar tudo.
Mas a gota de água parece ter sido a revelação de que o primeiro-ministro esteve numa festa na sua residência, para a qual foram convidados mais de uma centena de funcionários, a 20 maio de 2020. Enquanto Isabel II estava de luto pelo príncipe Filipe – a imagem da Rainha sozinha na capela de São Jorge, no velório do seu marido durante 73 anos, devido às restrições contra a covid-19, impressionou os britânicos – funcionários de Downing Street deram uma festa, avançou o Telegraph. Passou-se música, um dos funcionários foi mandando comprar garrafas de vinho – dessa vez, Boris não estava lá, mas a imagem que ficou foi de uma cultura de impunidade no seu Executivo.
O apoio parlamentar do primeiro-ministro torna-se mais instável de dia para dia, com os conservadores em queda livre nas sondagens. Estão com uns meros 28% das intenções de voto, segundo o YouGov, menos 10% que os Trabalhistas, que já não estavam tão à frente do Governo há quase nove anos. E muitos deputados conservadores começam a questionar se as suas hipóteses de reeleição não estão em perigo com Boris como primeiro-ministro, sendo que seis em cada dez britânicos querem a sua demissão. E se são precisos pelo menos 54 deputados descontentes para desencadear uma disputa à liderança dos conservadores, já pelo menos trinta se dispuseram a isso, avançou o Telegraph.
Tragédia e festa
Em maio de 2020, nos primeiros tempo da pandemia, quando as vacinas ainda eram uma esperança distante, o sentimento geral era de receio, as regras rígidas. O próprio Governo de Johnson, na altura em que deu a festa, apelava que os ajuntamentos tivessem no máximo duas pessoas, aconselhando os trabalhadores a «minimizar todas as reuniões e outros encontros no local de trabalho», só deveriam estar presentes «participantes absolutamente necessários». Os britânicos estavam proibidos de sair de casa, enfrentando multas de até 3200 libras (equivalente a 3830 euros), exceto por motivos essenciais, como trabalhar, fazer exercício, comprar comida ou medicamentos.
A exasperação com o isolamento entre os britânicos que cumpriam as regras do Governo, tornava-se cada vez maior. «Os níveis de ansiedade e depressão não melhoraram», escrevia o Guardian no dia seguinte à festa em Downing Street. Compareceram 30 pessoas, avançou a ITV, respondendo ao email do próprio secretário privado do primeiro-ministro, Martin Reynolds, que apelou aos convidados: «tragam as vossa próprias bebidas alcoólicas», a partir das 18h, para relaxar depois de «um período incrivelmente ocupado» e «aproveitar ao máximo este tempo maravilhoso».
Até funcionários de Downing Street estranharam o email. «Porque é que o Martin está a encorajar um ajuntamento massivo no jardim?», lia-se num sms obtido pela BBC. «Isto é a sério?», questionava outro.
É que as manchetes da altura eram trágicas. «No funeral, tudo nos foi tirado», descrevia Paula Betti, que nem pôde dar um último adeus à mãe, Stella, dois dias após a festa no jardim de Johnson. «Não pudemos vesti-la, não pudémos vê-la. Não pudemos ter um carro, ou um velório, para nos despedirmos e falarmos à família sobre ela», contou Paula, num artigo do Metro sobre os voluntários da Distant Memorials, que montavam vídeos sobre falecidos, como despedida virtual, dado que apenas familiares diretos podiam assistir aos funerais.
«Não sou a única pessoa que está de luto por ela», explicou Betti.«Atingiu-nos a todos de uma forma muito dura. As circunstâncias e o choque disto», lamentou, numa altura em que mais de 1,7 milhões de britânicos tinham sido forçados a faltar a um funeral, segundo a Cruse Bereavement Care.
Não espanta que o ultraje com as festas do Governo tenha cruzado barreiras partidárias, ao contrário de outros escândalos de Johnson, enfurecendo trabalhistas e conservadores. «Em vez de abraçar a minha mãe, estava a segurar no meu telemóvel a filmar o meu irmão a morrer», desabafou Lisa Wilkie, não conseguindo conter as lágrimas, numa reportagem que deu em horário nobre na BBC. «Pessoas morreram a cumprir as regras e eles quebraram essas regras para beber uma garrafa de vinho».
É difícil imaginar imagens mais danosas para a reputação do primeiro-ministro. «Eu odeio-o mesmo», acrescentou Alejandra Godoy, que perdeu a mãe em maio de 2020. «Lamento dizer isto, porque a minha mãe não quereria que dissesse isso. Mas ele é simplesmente uma desgraça… Ele mente, mente, mente».
Mau sangue nos bastidores
Quem quer esteja a divulgar estes podres de Johnson à imprensa é seguramente alguém no seu círculo próximo, e tem um timing incrível. Primeiro, demorou um ano a divulgar a festa de Natal – e história não apareceu num mês qualquer, surgiu em dezembro, quando o Governo debatia se permitia festas de Natal ou não, dando-lhe tração. Depois, esperou-se mais um pouco, deixou-se o Governo negar quaisquer quebras do confinamento, e lá aparece a foto do convívio de maio. Já na semana passada, quando o escândalo das festas começava a desaparecer da imprensa, veio primeiro a notícia da festa de 20 de maio, onde Boris esteve presente, seguida da festa na véspera do funeral do príncipe Filipe – onde Johnson não esteve presente, nem é certo que soubesse, mas já não se conseguia distanciar do escândalo.
A especulação quanto às fugas de informação é intensa. Alguns apontam para o seu antigo conselheiro, Dominic Cummings, considerado o arquiteto do Brexit, em tempos visto como uma espécie de ‘eminência parda’ por trás de Johnson. Desde de que foi despedido – na imprensa britânica diz-se que saiu derrotado na sua disputa de poder com a mulher de Johnson, Carrie – que Cummings se dedica a fazer a vida negra ao primeiro-ministro. Aliás, foi o primeiro a falar publicamente da festa de 20 de maio, já em dezembro, indicando que era aí que estava o verdadeiro escândalo.
Outros salientam que, entre os principais candidatos ao posto de Johnson, está o próprio ministro das Finanças, Rishi Sunak. E não deixaram de reparar que a foto do convívio de Johnson no jardim – onde surge uma figura que parece ser Cummings, indicando que não ser ele a segurar na câmara – aparenta ter sido tirada de uma sala no primeiro andar, onde trabalha Sunak e a sua equipa. «Tem de ter sido tirada por alguém associado ao ministro das Finanças», disse uma fonte «bem colocada» no nº 10 de Downing Street ao Telegraph.
A questão é que Sunak – uma estrela em ascensão, representando a fação thatcherite dentro dos conservadores, defendendo uma política económica ainda mais austeritária – há muito que é visto como estando a preparar-se para dar uma facada nas costas de Johnson, que é menos avesso que o seu ministro das Finanças a algum investimento público.
Aliás, quando quase um centena de deputados conservadores se revoltaram em dezembro, votando contra as restrições devido à covid-19, Sunak – que nos últimos tempos tem mostrado o condão de desaparecer sempre que há um escândalo envolvendo Johnson, enquanto os seus colegas acorrem a defendê-lo – era considerado o candidato ideal a primeiro-ministro dessa fação. Outra potencial rival do primeiro-ministro é a sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Liz Truss, que se tem desdobrado em jantares com doadores e deputados, algo apontando como o construir de uma eventual corrida à liderança.
A imagem que fica é de um Executivo paranoico, um ambiente de trabalho pouco saudável, cheio de disputas internas, onde se guarda com cuidado tudo o que sejam emails e fotos comprometedoras dos colegas e chefes, não venham a dar jeito no futuro.
«Dadas as dificuldades em que os conservadores estão agora, eles estão em risco de implodir, como resultado de lutas internas dentro do partido», sintetizou John Curtice, professor de Ciências Políticas na Universidade de Strathclyde, ao Herald.