After life, a série britânica pensada pelo comediante e ator Ricky Gervais, tem sido um sucesso desde o seu lançamento em 2019. Agora, o público foi presenteado com a terceira temporada e não demorou muito até colocar a produção no topo da lista das séries mais vistas da plataforma de streaming, Netflix.
Contudo, isso não significa que todos a tenham recebido da mesma forma. Há aqueles que a adoram, considerando-a “genial”, e aqueles que a detestam, por nos querer “levar à exaustão”. Mas afinal, o que há de tão especial com a vida de Tony (personagem principal interpretado por Gervais)? Porque é que nos rimos assim da angústia alheia? De que forma nos devemos comportar mediante uma comédia dramática que nos fala de perda, suicídio, depressão, indiferença e saudade? Como lidamos quando no ecrã nos mostram precisamente a maneira como não devemos tratar os outros? Ou será que Gervais nos quer provar precisamente o contrário? E porque é que, mesmo assim, o sorriso não se controla e, em alguns momentos, a gargalhada mistura-se facilmente com lágrimas?
Uma coisa é certa, ouvimos falar dele, já há muito e cada vez mais. Desde a série The Office que, em 2004, ganhou o Globo de Ouro de Melhor Série de Televisão – Musical ou Comédia e lhe valeu um outro de Melhor Ator em Série de Televisão Musical ou Comédia; à série Extras, de 2005, onde interpreta Andy Millman, um aspirante a ator que só encontra trabalho como figurante, apelidando-se “artista de fundo” como forma de tornar o trabalho mais digno; à apresentação dos Globos de Ouro, em 2020, onde protagonizou momentos “tensos”, ao tocar no nome da Hollywood Foreign Press [que organiza os Globos de Ouro], afirmando que esta “quase não sabe falar inglês”, ao aludir à pedofilia ligando-a aos filmes Surviving R. Kelly, Leaving Neverland e Os Dois Papas, que venceram nessa noite, ao criticar a Apple descrevendo-a como “uma empresa que gere fábricas de trabalhadores mal pagos e com muitas horas de trabalho na China”, ao ser “inconveniente” com a plateia alegando que esta “não sabia nada sobre o mundo real” e ainda, ao falar da maneira como os atores “deixam de ser atores”, depois de começarem a trabalhar com as plataformas de streaming Netflix e HBO. “Todos os melhores atores saltaram para a Netflix e a HBO. E os atores que só fazem filmes de Hollywood fazem fantasia de aventura nonsense. Usam máscaras e capas, e figurinos mesmo apertados. O trabalho deles já não é representar. É ir ao ginásio duas vezes por dia e tomar esteroides. Temos algum prémio para o maior viciado tonificado”, disse o artista, na altura.
O humor controverso de Gervais Para além da visibilidade e de algumas controvérsias, Gervais não se leva muito a sério e, ao que parece, para si, o humor, tem de ser sempre um bocadinho “desconcertante”. Aliás, o seu humor tem apenas dois mandamentos: não há assunto estranho na comédia e, se alguém não gosta de uma piada, tem todo o direito de se ofender, mas não de impedir os outros de rir. A sua firme defesa da liberdade de expressão e polémicas afirmações contra a chamada “cultura do cancelamento”, fê-lo passar, aos olhos de muitos de “progressista” a “apoiante da extrema-direita”.
Contudo, segundo Gervais, a única coisa que quer é “viver até o ponto de ver a juventude de hoje a não ser suficientemente acordada para a próxima geração”, afirmou no seu podcast Absolutely Mental.
Além disso, o ator que foi escolhido como um dos nomes para a Calçada da Fama, este ano, acredita poder vir a ser “cancelado” também. “Tu podes ser cancelado por coisas que disseste há 10 anos atrás”, afirmou numa entrevista ao podcast SmartLess.
A "singularidade" de After Life “Como se sente hoje?”, pergunta o psicólogo, num dos primeiros episódios da primeira temporada da série. “Um bom dia é aquele em que não me apetece disparar na cara das pessoas e depois atirar contra mim próprio”, responde Tony, com o seu ar de indiferença.
A verdade é que Tony perdeu a sua esposa depois desta ter sido diagnosticada com um cancro da mama, passa os dias a rever as filmagens de quando esta se encontrava viva – vivendo preso dentro dessas memórias que nunca passarão disso – e visita a sua campa para se manter “próximo”. Além disso, trabalha no jornal local e gratuito, The Tambury Gazette, onde é o responsável por contar as histórias das pessoas “excêntricas” que vivem na cidade fictícia de Tambury, Reino Unido, e faz visitas ao seu pai demente, no lar onde este vive. A sua vida está, portanto, virada de “pernas para o ar” e Tony já não quer viver.
Na verdade, a única coisa que o “salva” é o seu cão, Brandy, que ficaria sozinho se este morresse e o desejo de punir o mundo pela morte da sua esposa, dizendo e fazendo o que quer a tudo e a todos, sem medo das consequências. Contudo, todos aqueles ao seu redor querem contribuir para que este seja uma pessoa “melhor”.
Podemos, por isso, dizer que After Life nos coloca algumas perguntas aparentemente simples, mas a que ninguém sabe responder com precisão: Por que é que nos importamos tanto com o que as pessoas pensam de nós? Por que é que temos o instinto de agradar aos outros? Porque é que este nos oprime tanto? Tal como Tony, pararíamos de nos preocupar tanto com as coisas se o amor da nossa vida acabasse de falecer?
A série de maior sucesso da sua carreira, com mais de 85 milhões de telespetadores em todo o mundo, também acabou por isso, por representar o salto do comediante para a tragicomédia, ampliando os limites do humor. Mas nem toda a gente parece apreciar esta sua outra “faceta”. A terceira temporada da série, que saiu na passada sexta-feira, 14 de janeiro, na Netflix, tem atualmente uma pontuação de audiência de 76% no agregador de críticas Rotten Tomatoes, mas apenas 33% de pontuação média dos críticos.
As críticas Dando-lhe a pontuação de uma estrela, Chris Bennion, crítico do The Telegraph, chamou a temporada de “pudim banal, piegas e encharcado”.
Também a crítica Emily Baker, da publicação INEWS – que saudou as temporadas anteriores de After Life – se mostrou desapontada: “Os fãs que esperam um final satisfatório e limpo ficarão desapontados”, escreveu, acrescentando que “não porque as perguntas são deixadas sem resposta, mas sim porque foram completamente abandonadas”. “As intenções de Gervais são boas, e admito que derramei algumas lágrimas, mas as proclamações quase evangélicas de viver a vida ao máximo eram manipuladoras. Um programa de TV que inspira emoção pode ser assim tão mau? (Spoiler: Sim!)”, continuou. Baker avaliou a série em duas estrelas concluindo que “é o momento para After Life descansar e mesmo que Gervais tenha dito que não tem a certeza sobre a decisão de acabar com a série, deve saber que não existe mais nenhum lugar para onde ir”.
Por sua vez, Abby Robinson, do Radio Times, acredita que “o próprio ato de luto é pesado e monótono, e Gervais recusa-se a adoçar isso, inclinando-se para a sua permanência”. “Como resultado, After Life, tornou-se numa espécie de teste de resistência (…) É certo que as pessoas que acompanharam a série desde o início (100 milhões de lares, de acordo com a Netflix) vão adorar o capítulo final do programa, as suas muitas faces e suas respetivas idiossincrasias”, acrescentou.
Já os assinantes da plataforma de streaming enviaram a terceira temporada da série para o topo da lista das suas produções e, ao que parece, o crítico James McMahon, da NME, que premiou a série com quatro estrelas, compreende as razões. “Indesculpavelmente desagradável, sarcástica, adorável e comovente”, escreveu na publicação, sobre a série.
“Muitas vezes também um pouco confuso, um pouco como a própria vida”, acrescentou. “Tony muitas vezes é malvado, um pouco preconceituoso, arrogante, acha que está certo sobre tudo, é o mestre do egocentrismo dentro do seu próprio universo. Contudo, é ainda mais poderoso por ser assim”, defendeu.
After Life é uma série original Netflix da Derek Productions. A série foi criada, escrita e realizada pelo próprio Ricky Gervais que, tal como Tony, não quer agradar ninguém. Talvez seja por isso que, aos 60 anos e com mais de 100 milhões de euros no banco, seja uma das caras mais conhecidas do Reino Unido.