Houve tempos em que lhe chamavam Abissínia. Tornou-se num dos delírios de Benito Mussolini que era muito atreito a eles, diga-se de passagem. Deve ter lido num livro de História qualquer sobre a fracassada tentativa italiana de tomar posso daquele território do Leste africano em 1890. E, impulsivo como sempre foi, arranjou um pretexto para declarar guerra à Etiópia e mandar invadir o país de Heilé Selassié no dia 3 de outubro de 1935. Sua majestade, que já se adaptara ao nome de Ras Tafari (Chefe Respeitado), Imperador da Etiópia, era visto pelo povo como O Deus Encarnado. Encarnado do verbo encarnar e não por causa da cor da pele que era outra. Seja como for, sob o comando dos generais Rodolfo Graziani e Pietro Badoglio, o grande exército italiano obteve uma verdadeira vitória à Pirro, aquele rei de Epiro e da Macedónia que lutou contra Roma e proferiu a famosa frase após a batalha de Heracleia que lhe custou todos os anéis e dois ou três dedos: «Mais uma vitória como esta e estamos desgraçados!». Benito estufou a peitaça, obrigou Selessié a fugir para o exílio e proclamou o deposto Victor Emmanuel III de Sabóia o novo imperador de um império que foi sempre de pacotilha. Enfim, tirando os ingleses, que são sempre do contra, ninguém quis verdadeiramente saber da Etiópia, nem mesmo um pequeno grupo de jamaicanos que se tinham reunido num movimento uns cinco anos anos, promovendo o uso sacramental da canábis. Bob Marley ainda não tinha nascido, se não talvez cantasse: «That until there no longer first class and second class citizens of any nation/Until the colour of a man’s skin is of no more significance than the colour of his eyes/Me say war…».
Muito bem, aqui chegados há que dizer que os italianos que se instalaram na nova colónia não simpatizavam por aí além com ideias subversivas sobre cidadãos de primeira e de segunda classe nem com a cor da pele ter o mesmo significado do que a cor dos olhos. Quem era italiano de nascimento era, por extensão, cidadão de primeira. Já os filhos de italianos com etíopes podiam não ser bem de primeira, mas também não viajavam propriamente na terceira classe económica. O problema era serem completamente desrespeitados pelos autóctones.
Vamos continuar em 1935. Em Asmara, na Eritreia, também ocupada pelos italianos, nasceu Luciano Vassallo, a 15 de agosto. O pai andava de espingarda na mão, chamava-se Vittorio Vassallo e embeiçou-se por uma rapariga de olhos negros de veludo: Mebrak Abraham. Dois anos mais tarde, vamos encontrar a a família em Adis Abeba. Luciano podia não ser um cidadão de segunda, mas é certo que também não era de primeira, pelo que foi um bocado esculhambado enquanto frequentou a escola. Fartou-se. Até às orelhas. Em 1958 já tinha desistido dos estudo e jogava futebol no Gruppo Sportivo Asmara, mais tarde Gruppo Sportivo Cicero. Mais cidadãos de segunda, se querem saber. Anexada à Etiópia, a Eritreia não tinha autorização para possuir um clube campeão. Ou seja, eram roubados a torto e a direito. Vassalo filho, dono de um orgulho de Mamma Mia, não estava disposto a aturar o situacionismo. Depois de um jogo amigável em que a sua equipa destruiu por completo a seleção etíope, transferiu-se para o Gejeret, também conhecido por Telecommunications Sport Club of Asmara, um clube mais bem visto pelas autoridades italianas, a ponto de ter ganho por duas vezes o campeonato da Etiópia.
Quando escrevi, por aí, que a família Vassallo se encontrava em Adis Abeba, cometi um lapso que remendo já de seguida: Vittorio desapareceu no entretanto. Luciano contaria mais tarde: «Na verdade nunca mais soubemos do paradeiro do meu pai. Não faço ideia se morreu na guerra ou se regressou a Itália. Não voltei a vê-lo».
Há 22 anos, Luciano publicou uma autobiografia em francês com o título muito sugestivo de Maman, Voici l’Argent. Nela explica o que teve de sofrer por ser mestiço, desprezado por etíopes e por italianos ao mesmo tempo: «Pour eux, nous étions que des bâtards, des fils de personnes, ou au mieux, des fils de putes».
Em 1952, o cenário alterou-se. Luciano foi chamado para integrar a seleção etíope. Era como um pária que ganhasse uma pátria. Encontrou-se com uma meio-irmão cuja existência desconhecia, Italo Vassallo, algo que talvez servisse de prova para a sobrevivência de um pai desaparecido. Dez anos depois, foi o herói da Etiópia na tentativa de qualificação para a fase final do Mundial do Chile mas, sobretudo, o capitão da equipa que conquistou a Taça de África das Nações, em Adis Abeba. Recebeu o troféu das mãos de Heilé Selassié. Por pouco. Na federação tudo fizeram para o despromover, impondo-lhe a condição de mudar o nome para um que soasse mais etíope. Recusou firmemente. Não tinha vergonha de um pai perdido…