Negociadores russos e ucranianos sentaram-se à mesa no palácio do Eliseu, esta sexta-feira, com mediação da França e Alemanha, comprometendo-se a manter o seu cessar-fogo «incondicionalmente». No entanto, enquanto diplomatas debatem, na fronteira contam-se espingardas. A Ucrânia vai acumulando um enorme arsenal fornecido pela NATO e treinando os civis para a guerra; os russos posicionam-se.
Não que o cenário mais previsível seja uma ocupação de toda a Ucrânia ou a tomada de Kiev. Havendo um conflito, tudo indica que seria limitado, algo semelhante ao que vimos em 2014, com a anexação da Crimeia. Mais de cem mil tropas russas foram colocadas na fronteira, mas isso não deverá chegar para mais que ajudar os separatistas russos de Donbass a expandirem o seu território, no leste. Todos os olhos estão virados para a cidade de Mariupol, que parece particularmente vulnerável.
«Se a Rússia estivesse a conduzir preparações para uma invasão a larga escala seria muito mais notório», salientou Andriy Zagorodnyuk, antigo ministro da Defesa ucraniano.
Mesmo que o número de tropas russas na fronteira pudesse rapidamente duplicar, como avisou a semana passada o secretário de Estado americano, Antony Blinken, seria necessário pelo menos o triplo das forças lá estacionadas para sequer terem esperança de controlar uma insurgência ucraniana, garantiram vários analistas ao Guardian, lembrando o desastre que foi a ocupação do Iraque.
Isto sem mencionar a resistência das forças armadas da Ucrânia, que se estima contar com 145 mil efetivos, uma moral elevada e entre 300 a 400 mil reservistas, veteranos de anos de guerra contra os separatistas. Falta-lhes sobretudo defesas antiaéreas adequadas, além de arriscarem perder as suas comunicações perante um ataque cibernético da Rússia – que, como demonstração do seu poder, paralisou durante dias a administração ucraniana. No entanto, certamente conseguiriam fazer as forças russas pagar um custo humano elevado por uma invasão da Ucrânia.
Ainda assim, não há dúvida que «se completamente comprometidas, as forças armadas russas são significativamente mais fortes e capazes que as forças armadas ucranianas», escreveu Seth G. Jones, vice-diretor do Centro para Estratégia e Estudos Internacionais. Além disso, têm a vantagem de cercar a Ucrânia de três lados, tendo destacamentos no leste, que atravessariam território já nas mãos dos separatistas, no norte – tanto na Rússia como na Bielorrússia, aliada do Kremlin, que fica às portas de Kiev – e na Crimeia.
Seria a partir desta último território que uma pequena invasão russa seria mais eficaz. Ali, perto, à mão de semear, a 15km da linha da frente, está a cidade de Mariupol, na costa do Mar de Azov, com menos de meio milhão de habitantes, mas que é um dos motores industriais do país, com a grande metalurgia Illich. Caindo nas mãos dos separatistas, tornaria a criação de um Estado no leste da Ucrânia mais economicamente viável.
«Uma tomada de Mariupol seria mais fácil. Poderia ser feito em dois dias e provocar uma crise política em Kiev», admitiu um alto dirigente ucraniano ao Guardian. Aliás, a Rússia até poderia reforçar o Donbass com os mercenários que tem estado a contratar freneticamente, deixando o ataque nas mãos de separatistas, permitindo ao Kremlin fingir que não tem nada a ver com o assunto, como fez em 2014. E ainda teria a hipótese de dar apoio naval à ofensiva, ou até de cercar a cidade desembarcando tropas e tanques pelo mar.
Se é verdade que, desde a última vez que a Rússia encetou um ataque do género, em 2014, as forças armadas ucranianas – que, à época, acabaram sucessivamente desbaratadas – foram reforçadas, o mesmo poderia ser dito das russas. Os militares russos que ocuparam a Crimeia estavam equipados sobretudo com antigo armamento soviético, entretanto renovado.
Ganharam uma capacidade sofisticada de atingir os seus inimigos à distância, recorrendo a mísseis, artilharia, drones e força aérea, repetidamente experimentada durante a sua intervenção militar na Síria, ao lado do regime de Bashar al-Assad. Aliás, um dos fundamentos da nova doutrina militar russa até é chamada de «guerra sem contacto». Ou seja, a destruição do adversário à distância, usando armas de precisão, explicou um relatório recente do CNA, um dos centros de investigação que aconselham o Pentágono.
Não que essa doutrina, ideal para minimizar baixas, fosse possível de aplicar eficazmente numa contrainsurgência. Daí que esse cenário pareça tão improvável.
«Não creio que seja realista falarmos de uma invasão dentro de uma semana ou algo do género, ou num mês ou dois», avaliou Zagorodnyuk, ao Wall Street Journal. Mesmo o período apontado como ideal para uma pequena invasão, visando alvos como Mariupol, seria entre 4 de fevereiro – quando Vladimir Putin estará em Pequim, para a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, aproveitando para se encontrar com Xi Jinping, cujo assentimento pode ser crucial – e 20 de fevereiro, quando acabam os exercícios militares na Bielorrússia.
«Não estou a dizer que não vai acontecer», continuou o antigo ministro da Defesa ucraniano. «Estou a dizer que não vai acontecer nos próximos dias. Não com essa escala».