Numa altura em que recordamos os 77 anos da libertação do maior campo de concentração nazi, Auschwitz, na Polónia ocupada, onde foram assassinados mais de 1,5 milhões de judeus, e em que uma nova investigação pode ter identificado o traidor que revelou o esconderijo da família de Anne Frank em 1944, assinando a sentença de morte da adolescente alemã – como revela um novo livro da autora canadiana Rosemary Sullivan –, a memória do Holocausto continua bem viva.
Mas nem todas as formas de cultivar essa memória reúnem consenso. No dia 10 de janeiro, o conselho de educação do condado de McMinn, no Tennessee, votou para banir a novela gráfica Maus, de Art Spiegelman, das suas salas de aula. Segundo os membros do conselho, o livro contém material “inadequado para os alunos” uma vez que inclui “oito palavrões e um desenho de uma mulher nua”.
No livro, que em 1992 ganhou o Pulitzer de Literatura – tornando-se a única banda desenhada até hoje a conseguir esse feito – Spiegelman descreve as experiências do pai, Vladek, o prisioneiro número 175113 do campo de concentração de Auschwitz, e da mãe, outra sobrevivente do Holocausto, que acabaria por se suicidar quando o autor tinha 20 anos.
“Não precisamos de toda esta nudez” “Há uma linguagem grosseira e censurável neste livro”, defendeu Lee Parkison, diretor das escolas do condado de McMinn, de acordo com a ata da reunião. Opinião apoiada por muitos, como Tony Allman, membro do conselho escolar: “É necessário removê-lo. É vulgar e inapropriado. Não precisamos de promover este material”, frisou Allman. “Não estou a negar que foi horrível, brutal e cruel”, afirmou fazendo referência ao genocídio dos judeus perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. “Mas mostrar pessoas enforcadas, mostrar a morte de crianças? Por que é que o sistema educacional promove este tipo de coisas? Não é sábio ou saudável”, acrescentou. Mas Allman não se ficou pelas críticas ao livro. Também visou o autor: “Posso estar errado, mas o responsável por esta ‘arte’, não costumava fazer os gráficos para a Playboy?”.
Mike Cochran, outro membro do conselho escolar, descreveu partes do livro como “completamente desnecessárias”. “Estamos a falar de como ensinar ética aos nossos filhos… O livro começa com o pai e o filho a falar sobre a perda da virgindade do pai… Não é explícito, mas está lá”, referiu Cochran. “Não precisamos dessas coisas para ensinar história às crianças. Podemos ensinar-lhes história e podemos ensinar-lhes história gráfica. Podemos dizer-lhes exatamente o que aconteceu. Não precisamos de toda esta nudez”, defendeu.
Em resposta, uma supervisora pedagógica, Julie Goodin, respondeu: “Eu era professora de História, não há nada de bonito no Holocausto e, para mim, esta foi uma ótima maneira de retratar um momento horrível da história”, diz a ata da reunião. “Spiegelman fez o seu melhor para retratar a morte da sua mãe há quase 80 anos. É difícil para esta geração. Os jovens de hoje nem conhecem o 11 de setembro… Para mim, isto foi a sua maneira de transmitir a mensagem”, continuou Goodin.
Melasawn Knight, outro supervisor, ecoou a posição de Goodin de que a banda desenhada retrata a história como aconteceu: “Pessoas penduradas em árvores, pessoas que cometeram suicídio, pessoas que foram mortas… Mais de seis milhões de pessoas foram assassinadas!”, lembrou Knight. “Acho que o autor retrata tudo isso porque é uma história verdadeira sobre o seu pai. Está a tentar retratá-lo da melhor maneira possível com a linguagem que considera que mais se relaciona com aquela época”, acredita. “A linguagem é censurável? Claro. Mas foi esta a maneira que ele encontrou de fazê-lo”, remata.
“Tennessee é demente” Numa entrevista à rede CNBC na passada quinta-feira, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, Art Spiegelman admitiu estar “boquiaberto” e “desconcertado” com a decisão, lembrando ter conhecido imensos jovens que lhe confessaram ter descoberto o que aconteceu naquele período sombrio graças ao seu livro. “Mas também entendo que o Tennessee é obviamente demente. Está a acontecer algo de muito confuso lá”, contra-atacou o escritor. “Eles estão totalmente concentrados nalguns palavrões que estão no livro”, declarou. “Não posso acreditar que a palavra ‘maldição’ [’damn’] faça com que o livro seja atirado para fora da escola”, comentou.
Em relação à nudez, Spiegelman argumentou que o desenho em questão era uma “pequena imagem” que mostrava a sua mãe a ser encontrada morta numa banheira depois de ter cortado os pulsos. “Acho mesmo que eles são incrivelmente míopes no seu foco e têm medo do que está implícito”, admitiu o autor de Maus. Spiegelman publicou o primeiro volume do livro em 1986, depois de ter realizado várias entrevistas ao seu pai, e o segundo em 1991. O título significa ‘Rato’ em alemão – nos desenhos, os judeus são representados como ratinhos e os alemães como gatos.
Além do próprio autor, o deputado Steve Cohen, democrata do Tennessee e o primeiro congressista judeu do estado, defendeu que censurar livros sobre o Holocausto, ou sobre escravatura ou outras atrocidades, é uma maneira de “purgar a compreensão dos horrores do que a humanidade é capaz”. “É deprimente ver isto a acontecer em qualquer lugar do país… E quando se trata de censurar uma maneira fácil de chegar às crianças e de lhes ensinar o Holocausto, é particularmente perturbador”, lamentou o congressista.
O Museu do Holocausto, nos EUA, disse em comunicado no Twitter que usar livros como Maus para ensinar os alunos sobre este período da história, “pode inspirá-los a pensar criticamente sobre o passado, bem como nos seus próprios papéis e responsabilidades atuais”.
A “resistência” do conselho As críticas não parecem ter surtido efeito. Na quinta-feira, o conselho de educação do condado de McMinn reiterou a sua posição, dizendo que o livro foi retirado do currículo devido “ao uso desnecessário de palavrões, nudez e da sua representação de violência e suicídio”. “Um dos papéis mais importantes de um conselho de educação eleito é refletir os valores da comunidade que serve”, sentenciou.
Os responsáveis alegaram ainda que a obra é orientada para “adultos”, salvaguardando que a decisão de a retirar “não diminui o valor de Maus como uma obra literária significativa e impactante” e que fará questão de procurar “outras obras que atinjam os mesmos objetivos educacionais numa forma mais apropriada”.
A decisão da retirada de Maus das escolas daquele condado ocorre numa altura em que grupos conservadores em todo o país têm intensificado campanhas para banir livros das bibliotecas escolares, muitas vezes focados em obras que abordam questões raciais, LGBTQIA+ ou comunidades marginalizadas. Na Virgínia, por exemplo, o conselho escolar do condado de Spotsylvania votou por unanimidade no ano passado para remover livros com material “sexualmente explícito” das prateleiras da biblioteca escolar.
No condado de York, na Pensilvânia, professores e alunos contestaram e sabotaram a proibição de uma seleção de livros contados a partir da perspetiva de crianças gays, negras e latinas. Além disso, os legisladores republicanos no Texas têm pressionado para reformular as aulas de História, com o objetivo de minimizar as referências à escravatura e à discriminação anti-mexicana.
Sabe-se ainda que, a dada altura da reunião do conselho, um dos membros, Rob Shamblin, perguntou que outros livros a escola teria de remover do currículo se o que estava na base da decisão era a “linguagem obscena”. Livros considerados clássicos de leitura obrigatória nas escolas, como O Segredo de Terabítia, de Katherine Paterson; The Whipping Boy (O saco de pancadas, na edição brasileira), de Sid Fleischman, e Mataram a Cotovia, de Harper Lee, “também incluem linguagem obscena”, apontou o diretor da escola.
Dias depois de ter sido banida pelo conselho escolar do condado de McMinn, a banda desenhada tornou-se dos livros mais vendidos dos EUA. Duas edições entraram para o Top 20 da Amazon, fazendo jus ao ditado “O fruto proibido é o mais apetecido”.