Há um ano, as ruas de Rangum estavam pintadas de vermelho, cor do movimento pró-democracia, contra os militares que tinham acabado de dar um golpe de Estado, pondo fim a uma breve primavera democrática. Multidões de birmaneses, que semanas antes tinham dado uma esmagadora vitória eleitoral à Liga Nacional pela Democracia (LND), arriscavam sair à rua em protestos e greves, enfrentando fogo real dos militares. Pouco a pouco foram aprendendo a proteger-se, organizar-se, a esconder-se atrás de escudos improvisados, a ripostar a tiros com fisgas e cocktails molotov. No entanto, após mais de 1500 mortes, entre detenções e tortura, as ruas esvaziaram-se. Muitos opositores, sobretudo jovens, começaram a fugir das cidades, refugiando-se nas selvas e montanhas dos territórios fronteiriços, onde milícias de minorias étnicas estão em guerra civil desde a fundação do Estado birmanês. Aí, ativistas fartos de ser massacrados, sobretudo bamar, a etnia maioritária, receberam treino de guerrilha, formando as Força de Defesa do Povo (PDF, na sigla inglesa), lançando uma insurgência que foi escalando, tornando-se cada vez mais coordenada, sofisticada e mortífera.
“É uma guerra civil. Uma guerra civil de baixa intensidade mas uma guerra civil”, assegura David Eimer, antigo correspondente do Telegraph e do South China Morning Post, autor do livro A Savage Dreamland: Journeys in Burma (Bloomsbury, 2019), à conversa com o i.
Desde o golpe de Estado, mais de 12 mil birmaneses foram abatidos, estimou a ACLED, com o número de vítimas em manifestações a cair, enquanto o número de mortos em confrontos armados crescia.
Por trás da insurreição estão guerrilheiros que nunca sonharam combater, gente que em tempos teve vidas normais, como estudantes, médicos, donas de casa, camponeses, engenheiros. “São da geração Z. São uma geração que era muito nova nos tempos da anterior junta militar. Provavelmente nem têm memória disso, só conheceram um país relativamente livre, onde de alguma forma podias fazer o que querias”, salienta Eimer. “Eles levaram o golpe muito a peito. Não querem viver como os pais viveram, sob controlo militar, por isso é que estão a lutar”.
O desequilíbrio de forças entre o exército birmanês, ou tatmadaw, e os insurgentes é extremo. Os militares possuem o equipamento mais moderno, incluindo remessas de veículos blindados russos, que começaram a chegar há umas semanas, segundo a Myanmar Witness. Já a resistência começou a combater atirando explosivos em catapultas, tomando de assalto postos de polícia isolados, muitas vezes armados apenas com espingardas de bambu (ver foto acima).
“Nas zonas rurais as pessoas sempre tiveram aquelas tradicionais espingardas de um só tiro, feitas à mão, que serviam para caçar”, descreve Eimer. “Isso está a mudar. Agora estão a obter armas melhores. Capturam-nas ao exército e têm feito pressão no Governo de Unidade Nacional para os financiar”, referindo-se ao Governo pró-democracia no exílio. “Há muitas recolhas de fundos a acontecer no estrangeiro, vindas de birmaneses que vivem no Ocidente ou noutros pontos da Ásia. E estão a usar esse dinheiro para comprar armas mais modernas. Mas ainda usam essas armas velhas”.
Se em tempos o sonho do militares foi continuar a mandar no Myanmar, mas tendo uma figura de proa civil – daí que tenham acabado por libertar Suu Kyi da sua prisão domiciliária, em 2010 – à frente do regime, hoje, após o golpe, isso parece impossível, avalia Eimer. O movimento pró-democracia radicalizou-se, perdeu qualquer vontade de negociar.
“A junta militar sabe que cometeu um erro, que o golpe foi um falhanço”, garante o antigo correspondente. “Não conseguem controlar o país, os combates vão continuar até ao fim. Não sei quando isso será, mas pode demorar muito tempo. A resistência não vai desistir”.
Talvez nem todo o poderio do exército birmanês – descrito como um Estado dentro de um Estado, composto de veteranos de uma guerra civil interminável, que vivem isolados do resto do país, casando os seus filhos uns com os outros, controlando bancos, cervejeiras, minas de pedras preciosas – o consiga salvar.
“O que o golpe fez o povo birmanês inteiro juntar-se às etnias no ódio ao exército”, continua. “A questão é quanto apetite é que os militares têm para matar o seu próprio povo. Apesar de parecerem não ter qualquer problema em fazê-lo de momento. Mas há pessoas a desertar do exército e da polícia, ainda que em pequeno número”.