É frequente associarmos o vegetarianismo, ou veganismo, aos partidos de esquerda já que, por norma, a maior parte das pessoas os conhece por serem os que mais batalham a favor das causas animais e ambientais. Contudo, ao longo da história, já se tem provado que não é bem assim. Hitler foi um dos vegetarianos mais conhecidos do mundo e, atualmente, os grupos radicais de extrema-direita espalhados pelo globo, têm-se cada vez mais posicionado a favor desta “mudança de hábitos alimentares”. Porquê? Se uns acreditam que a carne é extremamente benéfica para o nosso desenvolvimento, outros, acreditam no cenário inverso.
O aumento do vegetarianismo em Portugal A verdade é que nunca se observou um número tão grande de pessoas, espalhadas pelo planeta, que optam por uma alimentação sem carne. Em Portugal, por exemplo, um estudo elaborado pela consultora de inovação espanhola Lantern e publicado em novembro do ano passado, revelou que mais de um milhão de portugueses assume ter uma alimentação predominantemente vegetal. “O número de adultos que segue uma dieta predominantemente vegetal em Portugal é superior a um milhão de pessoas”, concluiu o estudo intitulado The Green Revolution 2021 Portugal. Ou seja, 11,9% da população já se assume como veggie — o termo que engloba vegans (que excluem qualquer tipo de produto animal), vegetarianos (que não incluem peixe nem carne, mas consomem os seus derivados, como ovos, leite e mel) e flexitarianos (que comem carne e peixe só ocasionalmente).
De acordo com a investigação, a dieta com mais expressão dentro da comunidade veggie é a flexitariana com 800 mil portugueses a não abdicar totalmente da carne nem do peixe, no entanto, a consumir predominantemente vegetais. No que toca aos regimes alimentares considerados mais “restritos”, o vegetarianismo soma um total de 180 mil pessoas, já o veganismo 40 mil. Relativamente às principais motivações e preocupações entre aqueles que optam por este tipo de dietas estas assentam primeiro na saúde, depois no bem-estar animal e, por fim, na sustentabilidade. O estudo revela ainda que uma em cada sete mulheres é veggie, enquanto apenas 1 em cada 10 homens assume preferir uma dieta predominantemente vegetal.
As indústrias da carne Interrogada sobre a sua posição a esta “guerra cultural” entre direita e esquerda, que acusam mutuamente de haver determinadas dietas associadas às diferentes correntes políticas (entenda-se uma ecologia mais associada à esquerda, e um conservadorismo ambientalista mais associado à direita), a Associação Portuguesa dos Industriais de Carne, defende que embora possa parecer que existe essa analogia, na verdade, “não é bem assim”: “O PCP, que sendo um partido de esquerda, tem previsto, nos seus programas políticos, apoios à agricultura, pecuária e a agroindústria… No caso do PS, menos à esquerda, este também não manifesta nenhuma oposição à indústria”, exemplifica a APIC, que acredita que “a dicotomia está entre partidos mais de base urbana que são contra o mundo rural – a maior parte deles por desconhecimento e afastamento dessa realidade”. Para si, é inequívoco que “a falta de conhecimento da realidade faz com que se criem mitos”. “Quando referimos que a ecologia está associada à esquerda, há uma falta de conhecimento total desses partidos, que não sabem que para um ecossistema equilibrado é preciso agricultura e produção animal – fundamental para fixar a população ao interior, criando postos de trabalho”, defende a Associação. Segundo a mesma, a indústria é responsável por garantir a segurança dos alimentos que coloca no mercado, bem como “tem vindo a adaptar as suas unidades às leis de ordem ambiental”. “Preservamos o ambiente e a segurança não é um problema ideológico de esquerda ou direita! É apenas um problema de falta de interesse por parte desses partidos em se documentar tecnicamente (adequadamente) e de visitar o mundo real”, acredita.
No que toca à possibilidade do avanço de novas medidas ambientalistas e ecológicas – que reduzem o consumo de carne – poder colocar em causa a indústria e, consequentemente, a vida dos seus produtores, a APIC reconhece que tem havido, de facto, uma tendência para “diabolizar a carne”. Contudo e, mais uma vez, a Associação acredita que isto acontece por “desconhecimento”: “Sublinhamos a importância do consumo da carne em padrões omnívoros, pois, enquanto espécie humana e na cadeia trófica, bem como no nosso próprio processo digestivo, dependemos da ingestão de carne. Inclusivamente a ingestão de ferro – na sua forma mais biodisponível – o que tem que levar, forçosamente, a que os vegetarianos tenham que fazer as suas compensações”, explica. De acordo com a mesma, o consumo de carne ao longo de milhões de anos, “promoveu o aumento do cérebro que, por sua vez, passou a consumir mais energia para assim contribuir para a evolução cognitiva dos seres humanos (Homo sapiens), que por isso apresentam uma inteligência excecional – característica mais relevante da evolução humana”. “Também se tem observado que a população com elevado consumo de proteína animal (holandeses) apresenta uma estatura elevada; contrariamente, às populações com baixo consumo de proteína animal, como se verifica nomeadamente nalgumas regiões em desenvolvimento – as pessoas são relativamente baixas”, elucida. Além disso, acrescenta, uma dieta rica em proteínas de origem animal contribui também para “melhorar a condição do tónus muscular”, como é bem conhecido pelos atletas de alta competição, e evita “a perda muscular decorrente do avanço da idade”.
A direita radical vegan Mas nem todos concordam, mesmo que possa parecer contra intuitivo, uma dieta vegetariana ou mesmo vegan não é incompatível com o pensamento da direita radical.
Em 2018, o Centro de Análise da Direita Radical – centro de investigação com sede no Reino Unido com uma iniciativa pedagógica focada no estudo e combate ao extremismo de direita radical e fenómenos de interceção – publicou um artigo, onde enfatiza o significado dos corpos físicos para a direita radical, tanto no passado como no presente. Ao mesmo tempo que esta vê os corpos como locais de “regulação e disciplina, de rebeldia e resistência e de reprodução do pensamento ‘nós-contra-eles’”, há uma prática particular relacionada ao corpo, “o consumo de alimentos”. Segundo o artigo, são cada vez mais os grupos ligados à extrema-direita a adotarem uma dieta vegetariana ou mesmo vegan. “De fato, embora essas dietas sejam geralmente associadas a estilos de vida liberais/esquerdistas hoje em dia, existem ‘boas’ razões ideológicas pelas quais os membros da direita radical optam por esse tipo de alimentação”.
Na Alemanha, por exemplo, o movimento populista völkisch que surgiu no século XIX atuou não apenas como precursor do nazismo, mas também enfatizou os benefícios de uma dieta sem carne. Segundo o Centro de Análise da Direita Radical, para um dos principais membros desse movimento, Paul Arthur Förster, uma dieta sem carne era fundamental para alcançar o “bem-estar corporal” e o “bem-estar moral”. Há, portanto, desde cedo, uma ideia de “pureza de corpo e mente” ligada a essa dieta – que não mudou.
Como tal, entre os principais nazis, alguns representantes importantes, como Adolf Hitler e Rudolf Hess – um dos aliados mais próximos de Hitler, apelidado de “vice-führer” – seguiram uma dieta vegetariana. De acordo com o livro Hitler’s Table Talk 1941-1944, lançado em 1945, o próprio Hitler já havia falado da dieta supostamente vegetariana dos soldados de César, bem como do facto dos lutadores japoneses (e “o carregador turco”) se terem alimentado exclusivamente de vegetais, “o que supostamente explicava o facto de estarem entre os homens mais fortes no mundo”. Adolf Hitler conectava, por isso, a dieta vegetariana com a raça pura. Este defendia o vegetarianismo como uma escolha “universalmente natural e saudável”.
Segundo o artigo, atualmente alguns neonazis acabam por se ligar novamente a essa “tradição”. Embora aparentemente “desativo”, um grupo que se autodenomina Balaclava Küche criou uma agitação internacional entre 2014 e 2015 ao apresentar um programa de culinária no seu canal do YouTube com dezenas de milhares de visualizações. Pertencente à ala mais “inovadora” do neonazismo alemão contemporâneo, os chamados Nacionalistas Autónomos, não seguem simplesmente uma dieta vegan porque “Hitler também era vegetariano”. Os membros do grupo de direita radical, veem o seu consumo alimentar como “viabilizador de um corpo saudável, como uma escolha moral (opondo-se à objetificação dos animais que funciona como símbolo de uma cultura materialista e capitalista), ambientalmente amigável porque, por exemplo, reduz o uso da água na agricultura e como fiel à ideologia nacional-socialista”. Como tal, o corpo de extrema-direita é um corpo “a ser otimizado”, pois para os grupos, esse corpo é o corpo de um soldado, “um corpo que tem que ser puro e autodisciplinado”. Além disso, o grupo não só sugeria que as pessoas cultivassem a sua própria comida e comprassem localmente, como informava os seguidores sobre empresas multinacionais que não dependiam de testagens em animais.
Da mesma forma, entre todos os artigos dedicados à história, filosofia e política do nacionalismo branco, o site Aryanism tem uma página inteira dedicada ao veganismo. Repleto de citações de Hitler, os autores anónimos defensores do nazismo, afirmam que o veganismo é “uma marca registada de um autêntico nacional-socialista” e “um sinal de empatia genuína e um nível de nobreza além das normas atualmente populares”. Segundo a página, “os arianos devem ser vegans por razões éticas e não simplesmente por saúde ou vaidade”.
Rejeitando as associações tradicionais entre o veganismo e as “caricaturas hippies pacifistas”, os autores propõem que o verdadeiro arquétipo vegan é “o nobre guerreiro ariano”. Ou seja, “somente aqueles que renunciaram à violência iniciadora do consumo de carne podem ser confiáveis para retaliar adequadamente contra o mundo” que estes percebem como “degradado”. Por fim, a página argumenta que “os brancos têm uma predisposição genética para o veganismo ao reimaginar um passado pré-histórico onde os arianos eram agricultores que comiam grãos e vegetais, em oposição aos povos judeus que comiam carne e pastoreio”.
O “universo” veggie De acordo com a Vegan Society, o veganismo “é uma filosofia e um modo de vida que visa excluir – na medida do possível e praticável – todas as formas de exploração e crueldade contra os animais para alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito; e, por extensão, promove o desenvolvimento e uso de alternativas sem animais para o benefício dos animais, humanos e do meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de “dispensar todos os produtos derivados total ou parcialmente de animais”. Segundo a Associação Vegetariana Portuguesa o veganismo vai “mais além do que o regime alimentar, promovendo um estilo de vida”. Em relação à distinção entre os termos, explica a associação, o vegetarianismo é um regime de alimentação de base vegetal, que exclui produtos de origem animal. Tal como a Associação Vegetariana (AVP), também a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) reconhece as sub-vertentes do vegetarianismo: ovolactovegetarianismo (consome ovos, leite e laticínios), lactovegetarianismo (consome leite e laticínios), ovovegetarianismo (consome ovos) e vegetarianismo estrito (não consome nenhum produto de origem animal).
“O vegetarianismo tem um longo percurso de história, tendo surgido há 5 milhões de anos atrás com os nossos antepassados mais antigos. Esta prática foi transversal a diversas civilizações e ideologias, desde grupos religiosos no Egito ao Iluminismo do século XVIII, ainda que o registo mais antigo do vegetarianismo remonte ao século V a.C., na Índia. Vale dar nota que na cultura indiana, a prática da não-violência fundamentou este modo de vida, presente no Jainismo, Hinduísmo e Budismo”, contou Joana Oliveira, membro da associação, ao i. Segundo a mesma, em Portugal, o vegetarianismo terá surgido no ano de 1908, por influência de movimentos vegetarianos que nasceram em vários países da Europa. “Nessa altura, deu-se início a uma verdadeira revolução vegetariana em Portugal pelas mãos do impulsionador do vegetarianismo e naturismo, o médico Amílcar de Sousa’’, explicou. Interrogada sobre as consequências do consumo excessivo de carne, Joana Oliveira afirmou que, em primeiro lugar, está a questão da senciência dos animais. “Estudos realizados por especialistas em comportamento de animais a viver no seu habitat natural demonstraram que animais não humanos têm uma ampla gama de comportamentos, experiências e estados emocionais, que anteriormente eram atribuídos exclusivamente a humanos”, sublinhou. Igualmente, “já se reconhece o impacto ambiental do consumo de carne em Portugal e no mundo”. A produção de alimentos de origem animal, alerta, é responsável por um uso superior de recursos e emissões de gases de efeito de estufa, quando comparados com a de alimentos de origem vegetal. Além disso, segundo Joana Oliveira, o consumo excessivo de carne tem também impacto na saúde. “O vegetarianismo está associado à redução de vários riscos, como o de doenças cardiovasculares, diabetes e de alguns tipos de cancro”, contou.