Por Sofia Aureliano
É importante ressalvar que abomino o Chega e tudo o que ele representa. Por isso, a resposta emocional à pergunta que dá o mote a este texto é "Sim! O Chega é para banir! Já!”
Mas temos de ser mais inteligentes do que isto. E quem está no governo não pode ceder a caprichos emocionais. Há regras e, acima de tudo, há estratégias que são muito mais eficazes.
Por norma, só nos reconhecemos no eixo de um partido com assento parlamentar, podendo (ou não) conseguir simpatizar com atos e omissões de um ou outro. Mas não podemos sucumbir ao Eu e limitar a nossa ação pelas nossas ideias. Por isso é que a democracia nos protege dos efeitos perversos da ideologia e de sermos juízes em causa própria.
A opção de Antonio Costa de não receber nem ouvir o Chega é carregada de simbolismo, pode até dizer-se que é um manifesto de coerência com a palavra dada (que nunca foi grande preocupação do primeiro ministro até aqui), mas é questionável do ponto de vista democrático. E coloca em causa a promessa do próprio em relação ao autocontrolo no exercício do poder em contexto de maioria absoluta.
Como pode o governo justificar que não recebe o Chega, a terceira força politica com assento parlamentar, que representa a vontade de mais de 385 mil portugueses? Legalmente, pode argumentar que nada obriga o governo a receber qualquer partido. Logo, nada o obriga a receber o Chega. Mas democraticamente, não. Porque o Chega é, até sentença contrária, um partido legal e, quer se goste quer não, tem assento parlamentar. Se Costa recebe todos os partidos, não pode dizer que recebe todos menos um. Cuja representação foi conseguida por voto popular, em eleições democráticas.
A discussão sobre o exercício da tolerância para com intolerantes não é nova. Muitos pensadores já se lançaram em dissertações e ensaios sobre esta dinâmica, não se tendo chegado a uma conclusão consensual. Platão foi pioneiro na abordagem do paradoxo da democracia, quando conclui que uma maioria pode eleger um tirano.
Karl Popper, um dos mais brilhantes filósofos do século XX e convicto defensor da democracia liberal, fez decorrer deste dilema o paradoxo da intolerância: tolerar os intolerantes pode levar à destruição dos tolerantes.
Os dois paradoxos seguem de mãos dadas.
Para o explanar academicamente, costumo recorrer à analogia de uma casa: a casa é a democracia, onde se deve, por princípio próprio, cultivar a tolerância. Se deixamos à porta os intolerantes, não praticamos a democracia. O que é o mesmo que feri-la de morte. Se, por opção, os deixamos entrar, estamos a acolher no ventre aqueles que podem vir a ser os seus carrascos e levar ao seu fim.
É habitualmente dado como exemplo deste paradoxo a ascensão do nazismo, legitimada pela vontade popular, que terminou na mais sangrenta ditadura de que há memória. Também a popularidade de Adolf Hitler cresceu a expensas de um discurso que se alimentava da miséria, do medo e do descontentamento popular. Ninguém desconhece a História. Que nos sirva para evitarmos o erro mas não como alibi para condutas injustificáveis.
Racionalmente, podemos questionar: com o argumento de afastar os intolerantes, não estará Costa precisamente a sê-lo?
Como sobreviver ao paradoxo?
Julgo que a única forma é agir com inteligência e astúcia, recusando a armadilha fácil de dar argumentos inegáveis para o exercício de vitimização do Chega. Quando o seu fundamento é o descontentamento e a insatisfação e o seu alimento é a luta contra o sistema, nada o fortalecará mais do que ser ostracizado. Por outro lado, dificilmente se encontrará melhor ação de enfraquecimento do que lhe abrir portas, permitindo que seja engolido pelo sistema e que tenha de jogar segundo as suas regras.
Os inimigos mantém-se perto e controlados, como professava Lao Zi. Lá fora, à solta, farão o que até agora fizeram, ainda mais exacerbados pelo discurso de renegados.
Popper ajuda a resolver a questão. Defende que o segredo para a manutenção do princípio da tolerância é limitar o seu uso ilimitado. Ou seja, permitir as exceções. Na prática, isto quererá dizer que se aceitam os intolerantes na medida em que estes aceitem comportar-se e responder com tolerância. Todo o ato intolerante é punido, mas não a palavra.
Esta condição coloca o ónus do lado do Chega e é a melhor forma de controlar a sua ação. E de justificar a sua expulsão do jogo, caso não cumpra as regras. Algo que arriscaria a dizer que a maioria compreenderia e com o qual até conseguiria empatizar, limitando a proliferação das narrativas inflamadas de excomungados e oprimidos.
Se Costa for inteligente, não se deixa guiar por caprichos ideológicos que acabam por ferir a democracia. Pelo contrário, pode escudar-se legitimamente em princípios democráticos para justificar decisões que ache que possam ser impopulares junto do seu eleitorado. Nomeadamente, a de receber o Chega e de tratá-lo como tudo aquilo que é e diz não querer ser: mais um partido do sistema.
Não é obrigação, mas é uma necessidade. E se Costa não consegue vislumbrá-la, cabe ao Presidente da República aconselhá-lo, demonstrando que está apto a ser o garante do escrutínio e da limitação (saudável) de uma governação em contetxo de maioria absoluta que se espera que seja.
Não quer isto dizer que seja imperativo que o Chega tenha de ver qualquer materialização do seu pensamento em ação, ou que Costa tenha de dar qualquer seguimento a posições do Chega. Na realidade, na circunstância em que se encontra, o PS não tem de dar seguimento a ideias que divirjam das suas. Venham de onde vierem.
Mas há um respeito pelo eleitorado que tem de ser garantido. E concretizado. Se acreditamos que o progresso depende de uma sociedade pluralista e aberta e, sobretudo, democrática, é preciso respeitar todas as opções e crenças. Mesmo aquelas que consideramos que estão erradas. A sua existência é justificada na mesma medida que o são todas as nossas. E, se nos servir de consolo, não há melhor forma de descontruir (más) opiniões do que refutá-las. Factual e abertamente.