Isto é que me dói!

Esta comédia é bem o exemplo do que se passa sempre que o SNS não consegue dar resposta a todos os problemas dos doentes. 

Já lá vão uns anos, mas lembro-me como se fosse hoje. E nunca irei esquecer. É uma nota curiosa que posso acrescentar ao meu curriculum. Estávamos no verão, e eis que sou contactado pelo conceituado e conhecido ator José Raposo, dizendo que tinha uma certa urgência em falar comigo. Algum problema de saúde, calculei eu, muito longe de imaginar o desafio que me iria ser lançado. «Preciso da sua ajuda como médico para a peça que vou fazer. Chama-se Isto É Que Me Dói. Esteve em cena há muitos anos no Teatro Variedades e Raul Solnado era o ator principal». 
O texto, da autoria de Paulo Pontes, dramaturgo brasileiro já desaparecido, tinha de ser adaptado ao momento presente e era preciso fazer algumas alterações do ponto de vista médico, uma vez que a peça se passava toda em ambiente hospitalar. Era mesmo um desafio aliciante. «Conte comigo, Zé. Vamos ao trabalho». E assim foi. 
Depois de ler e reler o original, reuni com o encenador Francisco Nicholson, de saudosa memória, com Conceição Carvalho da produção, e com José Raposo e Sara Barradas, atores principais daquela comédia, para fazer uma apreciação global e chegar-se à versão definitiva do que se iria fazer. Depois foi subir ao palco do Teatro Villaret e servir-me dos meus conhecimentos para colocar os atores nos seus devidos lugares, enquanto o encenador dirigia os ensaios. O Hospital de Jesus colaborou com algum material, e as Irmãs ajudaram Fátima Severino, a atriz que desempenhava o papel de freira no hospital. Recordo ainda Ricardo e Miguel Raposo, nos papéis de doente e enfermeiro, Joel Branco, o médico assistente, e Joaquim Nicolau, o diretor da unidade hospitalar onde tudo se desenrolava.

A peça retrata a história de um doente internado num hospital a aguardar uma cirurgia que nunca mais se concretiza. E, já desesperado, admite recorrer ao setor privado. Mas, perante a quantia exorbitante que lhe é pedida, não tem outro remédio senão desistir da ideia e manter-se no mesmo local. «Quando me disseram o preço que tinha de pagar, pensei que era o preço pelo trespasse da clínica». Foi um êxito. Com uma espetacular interpretação de José Raposo, a que já nos habituou. E esteve meses em cena no Teatro Villaret.
Esta comédia é bem o exemplo do que se passa sempre que o SNS não consegue dar resposta a todos os problemas dos doentes. Falhas constantes, insuficiências de toda a espécie contribuindo para a desconfiança dos pacientes, são coisas também muito comuns entre nós.
 Cada vez há mais políticos a apregoar o investimento no SNS, mas, até agora, nada se viu. Era ótimo que o SNS chegasse a toda a gente a tempo e horas, sem ser preciso procurar alternativas; mas, se quisermos ser realistas e olhar para o problema com a máxima isenção, sabemos que esse desejo anda longe de se poder atingir. E se os doentes não procuram mais o setor privado é porque não têm poder económico — tal como o doente da história teatral, que não teve opção de escolha. 

E assim tem acontecido ao longo dos anos e vai continuar, enquanto não vier um Governo que possa alterar esta triste realidade. Fixar os profissionais no SNS para aumentar a capacidade de resposta era o ideal e aquilo que todos nós desejávamos. Mas, à luz das atuais condições, é simplesmente uma utopia e um objetivo impossível de alcançar.
Bem sabemos – e é preciso não esquecer – o que o Serviço Nacional de Saúde tem feito em tempo de pandemia. Todos lhes estamos gratos e o reconhecemos com orgulho. Não é fácil entrar numa guerra contra um inimigo desconhecido, mais poderoso e potencialmente devastador. A sua resposta não podia ser mais positiva, com os fracos recursos que temos. Porém, apesar de tudo isso ser verdade e ninguém o poder ignorar, também não podemos esquecer os outros doentes (não-covid) que vão ficando para trás e estão a pagar o preço de terem sido renegados para segundo plano. E o pior é que deles pouco se fala, ao contrário dos que estão infetados, que são sempre notícia em todos os telejornais. Por aqui se vê que o SNS não chega para tudo.
Afinal, a história do tal doente internado no hospital vítima de uma doença prolongada, que aguardava uma cirurgia sucessivamente adiada, sem esperança de melhores dias, tem muito a ver connosco. É que casos destes existem na realidade. Isto é que me dói!

P.S. – Atendendo a que se trata de um tema muito atual, deixo ao José Raposo uma sugestão: não faria todo o sentido repor o espetáculo?