Não é fácil ficar meses fechado numa casa onde se é vigiado 24 horas por dia. Até aí, parece haver um consenso. E só quem se predispõe a entrar no “jogo” dos reality shows sabe o motivo pelo qual vai, as dificuldades que enfrenta e o que espera encontrar ou receber.
A partir do momento em que a porta se fecha, todos os “olhos” se abrem para acompanhar, conhecer e comentar as dinâmicas daquela que é considerada “a casa mais vigiada do país”. Mas e se, de repente, até os que abominam o Big Brother começassem a falar sobre ele? E se Portugal inteiro tivesse uma opinião relativamente a um dos jogadores? E se, a realidade entrasse no jogo e aquilo que é um programa de televisão se tornasse centro de debate de um dos temas mais importantes nos dias de hoje: a violência doméstica?
Na última semana têm sido muitas as partilhas e denúncias nas redes sociais de que Bruno de Carvalho, ex-presidente do Sporting e um dos concorrentes do Big Brother Famosos, tem tido comportamentos violentos e abusivos para com Liliana Almeida, ex-membro do grupo musical Nonstop. Bruno e Liliana conheceram-se no programa da TVI, e à aproximação entre ambos seguiu-se um percurso marcado por uma grande instabilidade.
Tanto colegas da casa, como espectadores e comentadores têm, ao longo dos meses, alertado para situações “não-saudáveis” entre os dois e a “bolha” explodiu este domingo, depois de a Comissão para a Igualdade de Género (CIG) apresentar uma queixa ao Ministério Público contra o também gestor por violência doméstica, instando a estação para que o retirasse do programa “com urgência”.
As acusações As imagens mais divulgadas e partilhadas dizem respeito a uma situação em que Bruno de Carvalho foi alegadamente violento para a cantora. Nela, o ex-presidente do Sporting agarrou-lhe no rosto com alguma “brutalidade”, de forma a conseguir dar-lhe um beijo, enquanto Liliana se inclina para trás.
Numa outra situação, que ocorreu na emissão de sexta-feira, o gestor agarra-lhe com “violência” o pescoço, obrigando-a a baixar a cabeça, enquanto diz: “Não me faças de parvo. Gosto de ti. Fazes-me sentir mal”. Bruno de Carvalho é ainda acusado de manipular a companheira, tentar controlar as suas relações e interações, pressioná-la a ficar acordada para conversarem e dizendo-lhe que esta não “percebe nada” e que só pode “confiar nele”.
Apesar da onda de contestação que levou também muitos artistas a atacarem a estação televisiva por esta “monetizar”, ou lucrar, “com comportamentos violentos”, como foi o caso de Carolina Deslandes, ou Miguel Cristovinho, a TVI decidiu manter o concorrente no programa até à “gala” de ontem, onde acabou por ser expulso pelo público.
Liliana, por seu lado, defende-o, afirmando que o ex-presidente do Sporting nunca foi violento com ela e que a alegada violência que transparece nos vídeos divulgados faz parte da maneira como os dois se relacionam, sobretudo por não poder existir intimidade no programa. Mas afinal, qual deve de ser a atitude de uma estação televisiva neste tipo de situações? De que forma as associações responsáveis por este tipo de caso as veem? E os especialistas?
Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Igualdade de Género (CIG) explicou ao Diário de Notícias que a CIG apresentou queixa no Ministério Público, “tendo por base os factos que são do conhecimento público, mais precisamente o que se passou na emissão do programa Big Brother na sexta-feira”. A responsável referiu um “clima de ameaça permanente” e um comportamento “suscetível de configurar a prática do crime público de violência doméstica, na forma psicológica e física”.
Além disso, adiantou Sandra Ribeiro ao mesmo jornal, a comissão também contactou a TVI instando o canal a agir de imediato, expulsando Bruno de Carvalho. “Eu própria liguei para as relações públicas da estação avisando do facto de termos enviado um email a pedir para tomarem medidas imediatas para fazer cessar a situação”, revelou, adiantando que até domingo não tinha recebido qualquer resposta.
“Responsabilidade social” “Hoje é o Valentine’s day a que, também muitas vezes, chamamos de violence day”, diz ao i Elisabete Brasil, investigadora e ativista pela igualdade de género, coordenadora da estrutura de atendimento a vítimas de violência doméstica da FEM (Feministas em Movimento). A responsável não poupa indignação perante a posição da TVI este domingo. “É importante relembrarmos que se existem muitos namoros que são felizes e saudáveis, existem também, no namoro, muitas situações de violência, muitas vezes não percecionada, por se encontrar tão naturalizada, tão normalizada”, defende.
Enquanto sociedade, estamos centrados na “violência física”, sendo a psicológica ainda muito desvalorizada: “Esta segunda vai-se instalando e depois acaba por se transformar e crescer a outros tipos de violência”, alerta. Interrogada sobre o caso em concreto, considera que “temos de estar todos muito atentos” e a comunicação social tem “uma importância imensa naquilo que é a questão da consciência coletiva, na forma como passa a notícia, como a trabalha, mas também como age em situações em que pode estar em causa uma potencial situação de violência doméstica”.
“É de sublinhar a importância que esta tem na consciência coletiva, na questão de poder contribuir para uma sociedade melhor, nas proporções que pode ter a forma como esta lida quando está perante uma situação destas em que possam estar a ocorrer relações tóxicas à frente de toda a gente num canal de televisão”, sublinha. No seu entender, há aqui um dever acrescido de responsabilidade social e ação. “No fundo, não romantizar a questão. Temos de estar alerta!”, aponta.
João Lázaro, Presidente Executivo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e Presidente do Victim Support Europe (VSE), concorda: “A questão é que um programa de entretenimento televisivo está a normalizar a violência numa relação amorosa, através da partilha desses conteúdos. Principalmente se forem protagonizados por pessoas que têm amplo reconhecimento social”, afirma ao i. Na sua opinião, esta atitude dá ideia de que “se estes atos forem feitos num quadro de exposição mediática, por pessoas conhecidas, isto é possível”. “Isto é claramente o contrário ao que deve ser feito”, sublinha.
De acordo com Lázaro, existem questões de auto regulação, da produção e transmissão destes conteúdos. “Isto deve partir da própria indústria (…) Portanto, cada formato tem as suas limitações, as suas regras próprias e este formato televisivo já nos foi habituando a fazer o teste a determinados limites. Tem de haver uma regularização e responsabilização social e ética, de quem produz e quem divulga, porque não se podem demitir desse papel: de não transmitir nem permitir mensagens que apelem a situações negativas como esta. A violência, o discurso de ódio, e por aí”, defende o responsável.
Além disso, explica, muitas pessoas “confundem a realidade com a ficção”: “Muitas vezes as pessoas encaram estes programas como ficção, ou seja, ‘o que se está a passar é apenas um jogo’, portanto muitos dos comportamentos são ficcionados. Mas não nos podemos esquecer que o próprio formato se chama ‘reality show’. Estamos a falar de realidade, não de verosimilhança com a realidade”, alerta.
Uma relação “não saudável” Segundo Catarina Beato, mentora em relações, “o amor é um lugar de respeito entre duas pessoas e violência nunca é amor”. “A situação Liliana/Bruno, sem apelidos porque não me interessa o facto de serem famosos, tem vários conceitos subjacentes mais complexos”, começa por explicar-nos. E o que podemos considerar violência psicológica numa relação? “De forma muito geral consideramos a obsessão, manipulação, ciúme, isolamento, como formas de agressão. São conceitos abrangentes que nos levam aos limites individuais de cada um e a uma questão ainda mais difícil: o consentimento”, continua.
“Na novela da vida real tudo isto ficou em cima da mesa e podemos, no melhor e desejável dos cenários, afirmar que dois adultos estão numa relação com características intensas, mas consentidas”, elucida. Ainda assim, acrescenta, “estão num programa de televisão e, desta forma, contribuem para a normalização destas características”. Para Catarina, perante o número de mulheres que morrem às mãos de companheiros e ex-companheiros com que viveram relações abusivas, é preciso “não normalizar”, porque estas vítimas “não começaram as suas histórias com um murro ou um tiro”.
“Se vejo numa novela da vida real e aceito como normal que alguém segure o pescoço da pessoa com quem uma relação, o que faço se estiver na rua e vir isso? Deixo passar? Ou intervenho? Perpetuamos a ideia de que ‘entre o casal não metemos a colher’?”, interroga.
Já a psicóloga Catarina Lucas afirma que devemos olhar com particular cuidado para esta situação concreta, “uma vez que se trata de um programa onde habitualmente os concorrentes interpretam papéis, exageram situações para atraírem visibilidade, de modo a evidenciarem-se e onde táticas de jogo são muitas vezes combinadas”.
“Todavia, mesmo que eventualmente se trate de uma encenação que os dois criaram, os espetadores não têm forma de fazer a distinção entre isso e a realidade, sendo por isso um exemplo negativo daquilo que deve ser a vivência do amor e de uma relação”, explica. Não querendo cair na abordagem da crítica a um alvo fácil, nota que “é importante realçar que devemos desenvolver-nos enquanto membro de um casal de forma empática, compreensiva, construtiva e complementar”.
Por isso, devemos “retirar ensinamentos” de comportamentos a evitar ou aos quais estar atento numa relação: “Isolar o outro, impedi-lo de conviver com amigos, conhecidos ou familiares, obrigar a tomar posições drásticas e pouco fundamentadas, fazer chantagem emocional, manifestar comportamentos de posse, podem ser alguns exemplos de uma relação pouco saudável e em último caso abusiva”, alerta.
Catarina Lucas acrescenta ainda que na situação em concreto, as dinâmicas emocionais e psicológicas são “mais elucidativas do que a situação física apontada”, a qual é difícil enquadrar e catalogar. Apesar disso, “é possível observar algumas dinâmicas psicológicas que podem resvalar para uma relação pouco saudável e que diríamos não serem as desejadas no que à vivência das relações interpessoais, românticas ou não, diz respeito”.