Crescemos acompanhados pelos clássicos da Disney que nos faziam acreditar em contos de fadas. E, mesmo depois de adultos, tem sido possível “resgatar” algumas daquelas que são as histórias mais marcantes de nossa infância, já que a Walt Disney, não se pára de “reinventar”, produzindo versões e transportando as personagens desses clássicos de desenhos animados para “a vida real”, com atores em carne e osso. Tal como foi o caso do remake de A Bela e o Monstro, em 2017, por Bill Condon, ou, Rei Leão, em 2019, produção realizada por Rob Minkoff, Darrell Rooney, Roger Allers, Bradley Raymond, que, graças à nostalgia do público, se revelaram grandes sucessos de bilheteira. Além disso, outras tantas histórias já foram anunciadas: Pinóquio, que estreará ainda este ano; A Pequena Sereia, em 2023 e ainda Branca de Neve e os Sete Anões, no mesmo ano.
A verdade é que este último – conto de fadas clássico criado pelos Irmãos Grimm e publicado entre os anos de 1817 e 1822, num livro alemão com várias outras fábulas, intitulado Kinder-und Hausmärchen, em português Contos de Fada para Crianças e Adultos e, mais tarde (1937), readaptado pela Walt Disney, tornando-se assim a primeira longa-metragem de animação da empresa – já tem sido “reimaginado” e alterado por diversas vezes.
Em 2012, no filme Branca de Neve e o Caçador, pensado por Rupert Sanders, o príncipe foi substituído pelo caçador, a quem originalmente foi confiada a tarefa de matar Branca de Neve pela Rainha má. Nessa altura, o filme contou com sete anões, interpretados por atores de estatura média, ou seja, sem essa característica, mas depois alterados digitalmente para assim se parecerem. Outro filme, também de 2012, chamado Espelho Meu, Espelho Meu, focou o enredo na madrasta de Branca de Neve, protagonizada por Julia Robert. Nessa produção, os sete anões foram mesmo protagonizados por atores com nanismo, tais como Mark Povinelli, Jordan Prentice, Danny Woodburn, Sebastian Saraceno, Ronald Lee Clark,Martin Klebba e Joey Gnoffo. Além de Hollywood, um ano depois, nasceu a produção Blancanieves de Pablo Berger, que se passa na Andaluzia dos anos 1920, em que seis anões (incluindo um travesti) ensinam Branca de Neve a tourear.
Agora que está a ser preparada a nova versão do clássico, o mais famoso ator anão do mundo, Peter Dinklage, uma das maiores estrelas da aclamada série da plataforma de streaming HBO Max, A Guerra dos Tronos, arrasou o remake da Disney. Porquê? Segundo o jornal britânico The Guardian, Dinklage, que tem uma forma de nanismo denominada como acondroplasia, criticou numa entrevista ao célebre podcast WTF, o facto de a Disney ter escolhido uma atriz “latina” – Rachel Zegler, nascida em Nova Jérsia, EUA, mas com ascendência colombiana – para o papel principal de do filme, promovendo assim a diversidade étnica (ou “racial”, termo comum na sociedade norte-americana), mas ainda assim voltar a contar uma história “anacrónica” e “carregada de estereótipos sobre os anões”: “Fiquei um pouco retraído quando eles ficaram tão orgulhosos de escolher uma atriz latina para ser a Branca de Neve. Eles ainda estão a contar a história da Branca de Neve e os Sete Anões. Recuem um pouco e olhem para aquilo que estão a fazer. Não me faz sentido nenhum”, começou por afirmar o ator. “És progressivo de uma certa forma, mas ainda estás a fazer aquela história retrógada de merda sobre sete anões que vivem juntos numa gruta. O que raio estão a fazer? Não fiz nada para fazer avançar a causa? Parece que não o suficiente”, acrescentou, sobre o filme que vai ser realizado por Marc Webb responsável por filmes como o Fantástico Homem-Aranha. O ator defendeu ainda que a Disney deveria dar um passo atrás e reavaliar o projeto. E, ao que parece, a sua “vontade” foi atendida. A produtora, respondeu entretanto às críticas do ator norte-americano, através de um comunicado: “Para evitar o reforço de estereótipos do filme de animação original, estamos a adotar uma abordagem diferente com essas sete personagens e a receber aconselhamento de membros da comunidade de nanismo. Estamos ansiosos por partilhar mais detalhes à medida que o filme avançar para a produção, após um longo período de desenvolvimento”. Apesar de, nesse artigo, a “abordagem diferente” não ter sido especificada ao ponto de se poder concluir que os “sete anões” da história vão ou não ser removidos na nova adaptação a filme que está em fase de pré-produção, no mesmo dia, o site norte-americano TheWrap, que se foca na indústria do entretenimento, publicou que a Walt Disney Company está mesmo a preparar-se para substituir os “sete anões” por um grupo de “criaturas mágicas”, não se sabendo ainda se vão manter os nomes e as características da história original.
As críticas aos clássicos O filme Branca de Neve e o Caçador, estrelado por Kristen Stewart, já havia recebido uma reação negativa no seu lançamento, depois dos anões terem sido interpretados por atores de estatura média – incluindo Bob Hoskins e Ian McShane – cujos rostos foram digitalmente transmutados em corpos pequenos. Da mesma forma, nem todos parecem concordar com a opinião do DinkLage. Em entrevista ao Daily Mail, atores com nanismo posicionaram-se contra a mudança anunciada no remake do clássico afirmando que aceitariam com alegria os papéis para os personagens que Dinklage classificou como “atrasados” e que este não é autoridade sobre o que a comunidade “em geral” considera ofensivo. “Peter Dinklage é provavelmente o maior ator anão de todos os tempos, mas isso não o torna o rei anão”, explicou Dylan Postl, que atuou no filme Os Marretas.
Tal como Postl, os artistas Jeff Brooks e Katrina Kemp acreditam que a decisão da companhia lhes traz mais danos do que benefícios: “Dá-me a volta ao estômago pensar que existiam sete papéis de ouro para anões – que não conseguem papéis normais ou conseguem muito poucos – e que agora se foram, graças a esta pessoa”, revelou Brooks à mesma publicação.
Interrogado sobre o seu ponto de vista, o ator português David Almeida, revelou ao i que acredita existir espaço para todos: “Não tenho nada contra! Como ator, se me interessasse pelo guião, aceitaria! Porque um ator anão, pode fazer uma personagem com essa característica como pode e deve fazer personagens chamadas ‘normais’ sem ser o bobo ou o engraçado… Há espaço para tudo, vai da consciência de cada um! Agora ser contra não me compete!”, afirmou, interrogando se “num filme sobre a escravatura em África seria bom ter o grande Diogo Morgado a fazer de escravo negro?!”. “Repito, sou ator, já fiz os mais variados papéis… Se aceitaria este? Não sei! Mas não vejo problema nenhum!”, sublinhou, revelando ainda que reconhece uma certa “arrogância” por parte de Peter Dinklage. “Ele fala porque é o galã do nanismo, daí achar uma enorme arrogância. Se ele quer ver a Branca de Neve com atores ‘normais’ veja a Branca de Neve e os Sete Matulões, um filme porno!”, explicou, admitindo não ter “filtros” nem “pachorra para o pseudo politicamente correcto”.
O “percurso” de Branca de Neve Em 1937, a Walt Disney Productions lançou a sua versão musical do conto de fadas, com sete anões adultos chamados Zangado, Dunga, Feliz, Soneca, Mestre, Atchim e Feliz, que viviam numa caverna e que conhecem Branca de Neve – que fugia da sua madrasta – fazendo de tudo para protegê-la. O filme arrecadou oito milhões de dólares, o equivalente a sete milhões de euros, em bilheteiras em todo o mundo. No 11º Óscar, a Walt Disney recebeu um Óscar honorário e a animação esteve também indicada ao Óscar de melhor banda sonora. Além disso, Branca de Neve e os Sete Anões foi ainda selecionado para preservação no National Film Registry pela Biblioteca do Congresso em 1989 por ser “culturalmente, historicamente e esteticamente importante” e foi classificado na lista dos melhores filmes americanos segundo o American Film Institute, que também o nomeou como “o maior filme de animação americana de todos os tempos”, em 2008.
A princesa “branca como a neve”, foi então o primeiro cânone de princesas da Disney, seguido por Cinderela, em 1950, Aurora, de Bela Adormecida, em 1959 e Ariel, do filme A Pequena Sereia, em 1989. Apesar das histórias românticas nos filmes refletirem as dos contos de fadas originais, ao longo das últimas décadas estas têm sido vítimas de muitas críticas, principalmente por parte de grupos feministas, que alegam que estas espelham narrativas em que há sempre uma donzela “em perigo”, que espera ser salva por um príncipe. Com o movimento feminista #MeToo, Branca de Neve tem sido um excelente exemplo de controvérsia, já que esta princesa estava a dormir profundamente, quando é beijada por um príncipe, “sem o seu consentimento”. Os grupos em questão defendem que o filme passa, desde logo, uma mensagem incorreta às crianças.
Também o facto do enredo do conto se focar na beleza da princesa, devido à sua “pele branca”, ou na opinião de um espelho mágico que a apelida “da mais bela de todas”, atraiu críticas. Houve até relatos de que artistas como Keira Knightley, Alicia Keys e Kristen Bell “baniram” o clássico das suas casas. E, ao que parece, a Disney popularizou Branca de Neve tornando o enredo mais leve do que o original publicado pelos Irmãos Grimm, em 1812. Na história de Grimm, o príncipe não beija Branca de Neve para “ressuscitá-la”. Um acidente derruba o servo do príncipe no caixão, desalojando o pedaço de maçã da garganta de Branca de Neve. A rainha má é condenada a uma punição onde tem de dançar com chinelos de ferro em brasa, até cair morta – algo, claro, nunca mencionado pela produtora.
Algumas análises ao conto de fadas indicam que, embora os anões tenham falhado na proteção à Branca de Neve, estes deveriam representar pessoas gentis e carinhosas que cuidavam de órfãos naquela época. No entanto, os personagens foram retratados muitas vezes como “infantis, ridículos e impossíveis de levar a sério”. “Anões são destaque em filmes como Branca de Neve e os Sete Anões (1937), O Mágico de Oz (1939), Austin Powers (1999, 2002), Time Bandits (1981) e Charlie e a Fábrica de Chocolate (1971, 2005), onde o seu nanismo é a sua principal característica e é interpretado como comédia ou fantasia… Uma pessoa com nanismo raramente é representada como um ser humano comum, mas sim um ser travesso – feliz em ser ridicularizado e ridicularizado em vez de comum. Na mitologia, novamente os anões desempenham um papel proeminente junto com elfos, duendes, diabinhos, dragões e unicórnios”, escreveram Erin Pritchard e Robert Kruse no Journal of Literary and Cultural Disability Studies, em 2020.