“Já senti muita culpa por ter certos pensamentos e atitudes em relação ao sexo e alguma foi por ser católica e crescer a ouvir ideias de católicos sobre o assunto. Nem foi bem ouvir porque ninguém fala abertamente do assunto, mas sim subentender”, começa por desabafar Paula Félix Machado, de 48 anos, em declarações ao i. “Isto aconteceu muito mais na adolescência porque achava que era pecado e que Deus me ia castigar se fizesse alguma coisa”.
Mais de três décadas depois, recorda como “evitava ceder a beijos, amassos” e assume que “sexo então nem pensar”. “Às vezes cedia e pedia desculpa a rezar, prometendo que não voltaria sequer a pensar nisto. É claro que não conseguia”, avança, acrescentando que tinha a perceção de que “era grave” não ir ao encontro das crenças que lhe haviam sido transmitidas e incutidas e, por isso, culpabilizava-se. “A minha mãe dizia que era algo de que não se falava porque as pessoas já sabiam e não precisavam de aprender e com o meu pai o assunto nem sequer existia”.
Aos 18 anos, teve relações sexuais pela primeira vez, mas admite que se tivesse seguido o seu instinto, tal teria acontecido três anos antes. Isto é, “sem a culpa católica”. “Os meus pais são católicos. Agora, o meu pai é praticante e a minha mãe nem por isso. Mas já houve alturas em que ela era mais crente do que o meu pai e depois essas fases foram alternando. A irmã mais nova do meu pai já foi freira e agora pertence a uma ordem”, sublinha, adiantando que os progenitores “não souberam nem descobriram” quando foi a sua “primeira vez”.
No entanto, decidiu ir viver com o namorado. “Eu não quis casar por opção e fui viver com ele. As minhas tias pressionaram-me para casar porque, afinal, fui das poucas primas – e também do meu círculo de amizades – a não casar pela Igreja. Para mim, a festa do casamento causava muita ansiedade, mas nos primeiros tempos senti culpa por não sermos casados e vivermos juntos”, lembra, reconhecendo que se conheceu melhor durante estes 13 anos e sentiu “desejos e fantasias”. Porém, continuou calada. “Nem me atrevia a dizê-los por, devido à minha educação católica, achar que não eram decentes. Penso que as coisas estão a mudar hoje em dia. E ainda bem”.
“De vez em quando, há uma vozinha da consciência que me diz, se acontecer alguma coisa menos boa, que foi um castigo por ter sentido prazer”, contudo, Paula sente-se “mais livre” e de “consciência tranquila” por ser quem é.
“Raramente me sinto mal com algo graças, também, a uma Internet que nos põe em contacto com mulheres de cabeça livre. Como a psicóloga Tânia Graça, por exemplo”. “Tento pensar que pecado é algo que prejudica os outros e não aquilo que desejo ou sinto. Vou desabafando com amigas que têm ‘vidas’ parecidas. Ou seja, não me julgam”.
A história de Paula é tudo menos estranha entre os fiéis da Igreja Católica. Por isso mesmo, se fosse norte-americana, poderia constar na obra Sexo Santo! – Um Guia Para Um Amor Infalível, Avassalador e Excitante, traduzida para português e lançada pela Paulinas Editora. Nesta, Gregory Popcak, fundador e diretor executivo do Pastoral Solutions Institute, uma organização dedicada a ajudar os católicos a encontrarem soluções “repletas de fé” para problemas conjugais, familiares e pessoais árduos promete revelar “o segredo mais bem guardado do Cristianismo”, como é possível ler na sinopse, sendo que “capacita verdadeiramente os casais para fazerem com que o seu casamento dure por toda a vida”.
“O leitor está prestes a descobrir o segredo mais bem guardado do Cristianismo: o poder místico do amor sexual e as perspetivas práticas que esta tradição revela que lhe permitirá, a si e ao seu ser amado, ‘elevar-se, em êxtase, até ao Divino’”, lê-se na introdução. “Em Sexo Santo!, descobrirá aquilo que é necessário para celebrar uma sexualidade profundamente sacramental, profundamente espiritual, avassaladora, inebriante e excitante – uma relação sexual que é, ao mesmo tempo, plenamente sensual e plenamente capaz de ultrapassar a sensualidade, dando lugar a um encontro espiritual autenticamente transformador”.
Este encontro, que os fiéis portugueses e quaisquer outros curiosos terão oportunidade de explorar, foi fomentado por algumas personalidades. Entre elas, Nuno André, professor e investigador na área da História e da Teologia com especialização em Sexualidade que, ao longo dos anos, tem vindo a acompanhar e aconselhar alguns casais. “Ao ler este livro, muitos dos casos que aparecem fazem-me lembrar o casal x ou y que tinha os mesmos problemas ou desafios.
Neste caso, o autor acompanhou-os mais no sentido das questões do âmbito da sexualidade. Tem uma apetência diferente para falar de certas questões que os padres não têm. Em teoria, os padres não conseguem colocar-se nesse lado, mas ele consegue”, diz, referindo-se ao também professor de psicologia e teologia, dos EUA, que é habitualmente citado em publicações como o Los Angeles Times ou o Washington Post.
“O livro estava para ser publicado há algum tempo. A ideia da editora era ter publicado antes da pandemia. Acima de tudo, por uma questão de prudência, quis-se perceber até que ponto o livro reunia todas as questões. Houve uma espécie de escrutínio para ouvir teólogos, sacerdotes, gente que está por dentro das questões doutrinais para perceber se efetivamente havia condições para ser publicado em Portugal”, menciona o doutorando em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa que não hesita em afirmar que o protestantismo, na América, tem uma forma de abordar a sexualidade substancialmente diferente da dos católicos.
“Procuram ser mais conservadores, pois para eles o sexo só tem o fim da reprodução, enquanto o catolicismo está a ter uma visão que se desprende cada vez mais da ideia de que o prazer sexual está ligado ao mal e ao pecado”, indica, não escondendo que as reações serão diversificadas em território nacional. “Primeiro, tal como em tudo, uma boa parte das pessoas fica-se pelo título e subtítulo, pela sinopse, para apontar o dedo. Há os que dizem que é muito bom, que ‘até que enfim que dizem que o sexo é bom’, mas não leram o livro, e há aqueles que sem lerem uma única página vão apontar o dedo”.
“Depois há quem leia o conteúdo e teça as suas considerações em consciência, que é a atitude mais consciente, independentemente das conclusões que tirem. E há aqueles que vão ler às escondidas e, por isso, a editora podia apostar numa espécie de capa amovível com um título mais hipócrita!”, brinca, realçando que o objetivo primordial passa por “perceber a desconstrução que existe na abordagem em torno do sexo: quando se fala do pecado do sexo – o pecado quando existe não está no sexo em si, mas a circunstância em que acontece – porque isto é muito importante”.
“Não condeno nenhum tipo de prática sexual” “A tentação da carne não é uma laracha para os vegetarianos: é saber que, efetivamente, temos o nosso instinto sexual e, a partir do momento que atribuímos a relação sexo-matrimónio, uma questão moral, da tradição, cultural, que ao casamento, é o lugar onde o sexo deve acontecer, estamos a resgatá-lo e a pô-lo no âmbito do matrimónio. Não existe na natureza a ideia de fidelidade: existem sim animais que só têm uma parceira para reprodução, mas não é uma questão de consciência moral. É uma tentação porque, enquanto seres biológicos, estamos preparados para a procriação”, observa, evidenciando que o passo seguinte passa por nos questionarmos se determinada circunstância permite ou não que tenhamos relações sexuais. “Estamos a falar de atração e não de amor. E é isso que nos distingue dos animais irracionais”.
Nuno vai ao encontro da perspetiva de Ana Dionísio, católica que não segue “à risca” os ensinamentos cristãos e desafia os mesmos. “Tive relações sexuais com o meu primeiro marido antes do casamento. Não condeno nenhum tipo de prática sexual, apenas coisas como a zoofilia”, adiciona, frisando que ”entre seres humanos depende de cada pessoa”. “Se há algo que dá prazer de alguma forma a uma pessoa, não tenho nada contra. No que me diz respeito, por exemplo, não me atrai a pornografia, mas esta é uma questão minha”.
Em Sexo Santo!, Popcak escreve que “mesmo nos nossos tempos, supostamente iluminados em termos sexuais, a maior parte da educação sexual das pessoas tende a focar-se simplesmente na biologia e na mecânica, se porventura se foca em alguma coisa”, redigindo que “no que diz respeito ao romance e à paixão, as pessoas aprendem com Hollywood, com os romances de amor, com a televisão em horário diurno, com os colegas de escola e com a pornografia. Essas fontes, porém, nada sabem de sexo santo. Só sabem de erotismo”. Tal conecta-se com o facto de Nuno André considerar que o instinto sexual dos seres humanos deve ser educado, na medida em que quando não o dominamos, “rapidamente vamos socorrer-nos de práticas que podem trazer as tais dependências, os tais vícios”.
“As pessoas não fazem ideia da quantidade de homens e mulheres que estão viciados em pornografia. Hoje, qualquer pessoa, tenha a idade que tiver, vai à Internet e tudo aparece. Qualquer site pornográfico só tem uma pergunta: ‘Tem mais de 18 anos?’. Basta dizer que sim e, automaticamente, entramos”, adianta, argumentando que “a pornografia sugere o exagero da realidade e muitos dos nossos jovens crescem na expectativa de que aquilo corresponde à vida real. Aquilo é apenas representação pornográfica que em nada os vai favorecer na construção da sexualidade. Vai desviá-los da mesma”.
Neste sentido, Popcak manifesta que “se um casal se apoia apenas na excitação para estimular a sua relação sexual – como fazem os casais que praticam o erotismo –, a relação sexual ou estagnará com o tempo, à medida que as pressões da vida forem dissipando o sentimento de química que outrora existia no casal, ou o casal vai precisando de cada vez mais ‘ajuda’ proveniente de fontes exteriores, tais como a pornografia, a fim de criar ou de inflacionar artificialmente a excitação que já não é capaz de gerar de forma fiável”.
Deste modo, esclarece que “o sexo santo, pelo contrário, baseia-se tanto na excitação como na intimidade. Os amantes infalíveis não se opõem a tirar partido da centelha de paixão que deriva da química e da excitação espontânea. Pura e simplesmente, não abandonam a sua relação sexual ao destino”. A propósito deste excerto, Nuno André, professor universitário e dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, lembra o caso de um jovem que não se sentia capaz de fazer sexo com a namorada.
“Levava a parceira para casa da avó, mas havia imagens de Nossa Senhora por todo o lado. É um efeito inibidor. Sabia que era errado porque conhecia a rapariga há pouco tempo. Cresceu numa família muito tradicional e tinha a ideia de que só podia fazer sexo depois do casamento. Entretanto, a avó morreu e ele foi viver com a companheira para aquela casa. Teve de tirar as imagens e fazer o raciocínio inverso: Deus também é chamado para estar no nosso quarto. O sexo é lugar para o divino, manifestação do amor de Deus. Logo, Deus também está envolvido na relação sexual. Se compreendermos isto, a relação sexual passa a ser divinal”.
“O sexo é santo, santifica e é divino” “Tem de se acabar com a ideia de que com a mulher fazemos amor e a prostituta sexo puro e duro em que vale tudo. Não, não é: e este livro explica-nos porque é que não é. São as tais mentalidades hipócritas que separam a pessoa humana de um todo. Se quisermos falar em termos cristãos, admitimos que somos constituídos por corpo, alma e espírito”, continua, apontando que o que é do espírito eleva a alma até Deus, como a oração, a contemplação, o silêncio, a generosidade, o amor e “parece que o corpo nos arrasta para aquilo que é mau como supostamente o sexo, que vamos para o inferno, etc”. “Isto é influenciado pela filosofia aristotélica e platónica porque aquilo que é do corpo puxa-nos para a terra e deve ser combatido. Por isso é que um dos segredos mais bem guardados do cristianismo é que o sexo é santo, santifica e é divino”.
É por pensar assim que Ana Dionísio nem sempre é compreendida, tal como Paula Félix Machado. “A minha mãe tenta fazer de conta que não me ouve e não gosta das minhas posições. Já desistiu de me impingir a maneira de pensar. E acho que já mudei algumas maneiras dela! A maioria dos católicos ferrenhos acham-me ‘protestante’ porque não faço aquilo que esperam de mim”. Mas, no seio da religião católica, há quem não espere nenhuma atitude específica da parte dos fiéis relativamente ao sexo, como D. Januário.
“Do ponto de vista cultural, as pessoas, infelizmente, não sabem utilizar o tempo corretamente: veem determinados espetáculos televisivos que só ajudam a perder tempo e mostram o estado menos equilibrado em que determinados setores vivem. Tento ser compreensivo. Sobre esta temática, li hoje um artigo magnífico da autoria de um professor universitário da Universidade Católica Portuguesa sobre as teorias de género. Já ouvi muitas pessoas a querer interpretar, e muito bem, e li hoje esse magnífico artigo com a diferença entre sexo e género. Assinado pelo professor António Martins. Acho que toda e qualquer produção cultural deve ter abertura”, começa por constatar o atual bispo emérito das Forças Armadas.
“Fica muito mal dizer ‘O livro x fala disto e daquilo, não leio’. Devemos ter espírito aberto para ler tudo, mesmo aquilo que contraria as nossas convicções! Mais uma razão para lermos, para termos a liberdade de posições, sentido livre e progressivo. Eu sei que a cultura custa porque é preciso estudar muito, refletir, comparar, enfrentar situações diferenciadas, conectar, pôr em rede”, defende o bispo que foi ordenado presbítero a 8 de outubro de 1960 na Sé Catedral do Porto.
“O Papa Francisco fala no poliedro e é tão importante estarmos conectados e aquilo que parece o oposto é perfeitamente complementar! E há o oposto como contraditório. E, por isso mesmo, as várias leituras sobre uma temática tão difícil são importantes”, desenvolve, aludindo ao facto de que, em novembro de 2013, este comentou que encara a humanidade como “um poliedro”, forma geométrica que não apaga as diferenças e respeita a pluralidade, diferentemente e não como uma “esfera”, que “é lisa e sem facetas”.
“Agrada-me imaginar a humanidade como um poliedro, no qual as múltiplas formas, ao expressarem-se, constituem os elementos que compõem, na pluralidade, a única família humana. A verdadeira globalização é isso! A outra globalização, a da esfera, é uma homogeneização!”, exclamou, sendo que Januário Torgal Ferreira, nomeado bispo auxiliar do ordinariato militar a 22 de abril de 1989 pelo Papa João Paulo II, não esconde que, “infelizmente”, ainda vivemos numa época em que esta homogeneidade parece prevalecer.
“Se me vierem dizer que hoje há suicídios porque há jovens que veem determinadas coisas no Instagram, digo que não tenho nada contra, mas a verdade é que tudo sucede lá. Se me disserem que um jovem introspetivo lê determinadas coisas e não faz uma leitura amadurecida de textos culturalmente agressivos e não tem ninguém que o ajude, entra numa situação depressiva e suicida-se… Tenho de entender que não teve as ferramentas necessárias para compreender e apreender determinados conceitos. Tal como o rapaz que planeou o atentado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa”, finaliza, pedindo que todas as temáticas – principalmente, a do sexo – sejam abordadas e não varridas para debaixo do tapete.
“O sexo santo é a nossa herança. Deus deu o sexo aos seres divinos, e chegou o momento de nós o recuperarmos. O sexo santo é uma realidade sagrada, redentora, divina, unitiva e procriativa. É verdadeiro sexo para verdadeiros adultos”, lê-se no final do livro. “É uma celebração de tudo aquilo que o vosso casamento tem de bom, e é um meio pelo qual os esposos vão buscar a força necessária para tornar o seu casamento ainda melhor. Como sacramento, o sexo santo constitui uma parte importante da forma pela qual Deus torna um casal perfeito no amor (…) Resta-lhe apenas, a si e ao seu cônjuge, viverem a verdade que vos fará livres (…) Vão em paz, para amarem e servirem o Senhor”.