Ucrânia. Putin reconhece os separatistas, Kiev prepara reação

Putin rasgou os acordos de Minsk, que puseram em pausa a guerra civil na Ucrânia. O seu discurso trouxe à memória o passado imperial russo, entre receios de que mande tropas abertamente para Donbass.

Após meses de tensão na Ucrânia, com as suas tropas a cercar o país vizinho, Vladimir Putin deixou um ultimato. “Os governantes de Kiev têm de parar estas hostilidade e derramamento de sangue em Donbass”, declarou o Presidente russo, que tem acusado a Ucrânia de cometer abusos contra os seus cidadãos falantes de russo, no leste, falando até de um “genocídio” – talvez seja a tal “operação de falsa bandeira”, o pretexto para uma invasão, de que a Casa Branca fala há semanas.

“Caso contrário, qualquer consequência terá de pesar nas suas consciências”, continuou Putin, enquanto reconhecia a independência dos territórios separatistas russos em Donbass, as autoproclamadas Repúblicas Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk. O receio é que isso sirva para que o Kremlin envie as suas tropas abertamente para estes territórios – que a Ucrânia considera seu, apesar de não os controlar desde 2014 – e todos sabem que isso não cairá bem em Kiev. Nem que seja por isso mata e enterra os acordos de Minsk, para pôr fim à guerra civil na Ucrânia, que incluíam a aceitação de algum grau de autonomia para a região de Donbass.

Uns momentos depois do discurso de Putin, o Presidente ucraniano, Vlodymyr Zelensky, anunciou que estava em conversações com o Presidente americano, Joe Biden, para avaliar as suas opções. Zelensky preparava-se para discursar ao país na segunda-feira à noite, ao vivo em todos os canais ucranianos.

Entretanto, começaram a surgir parte das sanções prometidas pelos Estados Unidos. Biden já assinou uma ordem executiva para “proibir novo investimento, comércio ou financiamento por cidadãos dos EUA” para e das autoproclamadas repúblicas separatistas, anunciou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, bem como contra “qualquer pessoa determinada a operar nestas áreas da Ucrânia”. Ficaram em reserva as pesadas sanções prometidas contra o regime russo – uma prática padrão em diplomacia, provavelmente para não deixar o Kremlin sem nada a perder – no caso de uma invasão.

O pior é se, dado que parte do território reclamado pelos separatistas está em mãos ucranianas, está a caminho uma ofensiva apoiada pela Rússia, de maneira a expandir estas autoproclamadas repúblicas.

Kharkiv, uma das maiores cidades ucranianas, com 1,4 milhões de habitantes, perto da fronteira russa, poderia ser um alvo óbvio, mas os analistas apontam sobretudo para Mariupol. A uns 15 km da linha da frente de Donbass, esta cidade à beira do mar de Azov pode ter menos de meio milhão de habitantes, mas é um dos grandes motores industrias do país. Caso fosse capturada – seria fácil cercá-la por mar, reforçando uma eventual ofensiva com apoio naval russo – poderia dar alguma viabilidade econonómica às autoproclamadas repúblicas separatistas, até agora quase inteiramente dependentes do Kremlin.

O certo é que o tom do Presidente russo assustou os analistas. “Vi muitos discursos de Putin, e não creio que alguma vez tenha visto algo assim”, comentou Sam Greene, professor do King’s College, de Londres, e diretor do Instituto Rússia, no Twitter, descrevendo o discurso como “inacreditavelmente negro e agressivo”, Na prática, “este não é um discurso desenhado para deixar as pessoas felizes, mas sim furiosas”, alertou o professor.

Era bem visível um certo rancor no discurso de Putin, lembrando que os séculos em que a Ucrânia fez parte do império russo – aliás, Kiev foi a primeira capital do povo russo – e da União Soviética, atirando acusações aos líderes que permitiram que os ucranianos tivessem a sua independência. E fazendo questão de usar o termo novorossiya, ou “nova Rússia”, utilizado durante os tempos imperiais para descrever a Crimeia e Donbass.

“Os aliados europeus já sabiam à altura que a entrada da Ucrânia seria perigosa, mas tiveram de ceder à vontade do membro mais velho”, acusou Putin, referindo-se à pressão da Casa Branca para que a Ucrânia entrasse na NATO, em 2008, durante a conferência de Bucareste – considerada o ponto de viragem das relações entre Moscovo e Washinton, que desde a queda da União Soviética tinham sido relativamente amistosas. “Não podemos evitar reagir a esta ameaça real”, frisou Putin, salientando que a NATO há muito que passou a ver a Rússia como um dos seus grandes inimigo.

Já a NATO foi rápida a condenar o reconhecimento das repúblicas separatistas. A aliança “apoia a soberania e integridade territorial da Ucrânia”, garantiu o seu secretário-geral, Jens Stoltenberg. “Moscovo continua a alimentar o conflito no leste da Ucrânia por providenciar apoio financeiro e militar aos separatistas. E também quer um pretexto para invadir a Ucrânia de novo”.