Há poucos anos, ninguém imaginaria o seu maior ídolo a pronunciar o seu nome ou sequer a saber da sua existência. E mesmo hoje ainda impera a ideia de que os famosos são ‘inatingíveis’, quase como se de seres mitológicos se tratassem. Vivem em mundos paralelos e levam um quotidiano muito distante de tudo o que conhecemos. Contudo, em 2017, o britânico Martin Blencowe – que foi atleta olímpico, agente desportivo e, por fim, produtor de cinema, tendo colaborado em filmes de ação onde trabalhou com grandes nomes como Nicolas Cage, John Cusack e Bruce Willis – rompeu com essa ‘fatalidade’ ao criar uma aplicação onde os famosos gravam vídeos personalizados para os fãs, ganhando milhares de euros. A Cameo, explicou o seu criador ao The New York Post em 2021, é «um lugar acessível a qualquer pessoa que pode escolher, entre uma lista de pessoas famosas (na verdade, bastante conhecidas mas não celebridades de renome), que, por uma determinada quantia, gravam mensagens de vídeo personalizadas».
De acordo com Blencowe, as celebridades presentes na aplicação, apesar de manterem esse estatuto, já passaram o apogeu das suas carreiras – um cantor que não tem novos êxitos, um ator que representou numa série famosa, mas que já não é transmitida, uma celebridade que se tornou viral na internet mas de quem já pouco se ouve falar. Cameo (palavra que designa uma situação em que uma personalidade faz uma breve aparição num filme ou série) é, por isso, uma alternativa ao «telefone que deixou de tocar» e já tem permitido a muitos rostos conhecidos, «mas esquecidos», faturar milhares de euros. Assim, se alguém quiser, por exemplo, que John Aldridge, ex-avançado do Liverpool, grave uma mensagem de parabéns ao pai, que o comediante Paul Chuckle, dos Chuckle Brothers, grave um discurso motivacional a um membro da família, que uma das muitas vedetas da série da Netflix The Real Housewives of Beverly Hills dê um conselho a uma prima, ou mesmo que a atriz Lindsay Lohan envie um beijinho à namorada, isso está à distância de um clique. E de «algumas notas». Cada celebridade determina o custo das suas mensagens e a única coisa que Blencowe pede em troca é 25% do valor recebido.
Segundo o antigo atleta olímpico, a pandemia da covid-19 levou um grande número de atores e intérpretes «a ser forçado a procurar formas alternativas de transformar em dinheiro qualquer tipo de fama que possam ter».«Os concertos foram cancelados, as produções também, por isso eles estão a recorrer à app para poderem pagar os seus créditos à habitação e as propinas escolares dos filhos», revelou . «Não quero estar a dizer nomes nem a falar das finanças de quem quer que seja, mas há alguns indivíduos na Cameo a tentarem fazer milhões este ano».
Uma experiência ainda íntima
Na semana passada, a plataforma anunciou que se estreará no universo dos NFTs (tokens não fungíveis) – ativos digitais únicos, como fotos, vídeos ou outros tipos de produto digital que tenham um certificado de propriedade e possam ser considerados exclusivos. A partir de 17 de fevereiro, os fãs dos 50 mil atletas, músicos, atores e outros influenciadores que povoam a aplicação poderão ter acesso ao Cameo Pass via OpenSea (mercado americano de tokens não fungíveis on-line com sede na cidade de Nova Iorque) . Os NFTs, a um custo atual de cerca de 550 dólares, o equivalente a 485 euros, darão aos ‘comuns mortais’ acesso exclusivo aos eventos da Cameo, como festas organizadas na vila da empresa em Beverly Hills, encontros com as celebridades, perguntas e respostas. Permitirão ainda a aquisição de produtos que já pertenceram aos seus ídolos.
«No ano passado, muitos artistas ligaram para nós a perguntar o que estávamos a fazer no campo dos NFTs», revelou o CEO da Cameo, Steven Galanis, à publicação Fast Company. «Nós não tínhamos resposta para isso. Quando começámos a observar o que outras marcas faziam, a primeira coisa que percebemos foi que precisávamos de criar uma experiência de utilidade autêntica que fosse exclusiva da Cameo, em vez de apenas fazer algo porreiro», admitiu. Para o CEO, uma plataforma digital que cria um produto NFT «porreiro» não é necessariamente uma ideia inovadora nos dias de hoje. A mudança, explica, faz parte de um esforço muito maior que está em andamento para expandir a empresa além daquilo que a aplicação já oferecia.
O seu conceito «inteligente e amigável», combinado com uma «economia de influenciadores que favorece fluxos de receita de fácil elevação», acabou por transformar a Cameo num negócio impressionante nos cinco anos desde o seu lançamento. Os criadores do site produziram quatro milhões de vídeos, e só no ano passado a Cameo inscreveu 10 mil novas estrelas na plataforma. Agora, também existem versões em espanhol, francês, alemão e italiano. Os vídeos foram vendidos em 183 países no ano passado, à medida que a empresa se tornou mais conhecida.
Atualmente, o crescimento está focado em mais do que apenas «pequenos vídeos divertidos», as ‘Cameo Messages’, para enviar a alguém no seu aniversário. Galanis diz que a empresa está numa nova fase, a ‘Cameo 2.0’, que transformará a aplicação num serviço completo, onde as celebridades podem fazer tudo, desde configurar chamadas do FaceTime com os fãs (Chamadas de Camafeu); transmitir performances ou espetáculos de stand-up da sua sala de estar (Cameo Live); enviar textos (Cameo Direct); administrar um fã clube baseado na associação, onde os usuários pagantes recebem conteúdo exclusivo (Cameo Fan Club). No outono passado, a Cameo adquiriu a empresa Represent, que permite que celebridades e marcas criem vitrines on-line para vender produtos. «Queremos fornecer uma parceria unificada com artistas que possam ajudá-los a estar em contacto direto com os fãs», explicou Galanis.
Quanto ganham os artistas?
Brian Baumgartner, que interpretou Kevin Malone na série The Office, é uma das celebridades que mais ganharam dinheiro ao vender ‘saudações’ com o sentido de humor típico da sua personagem, no Cameo. De acordo com os números de 2020, nestes anos o ator ganhou mais de um milhão de euros ao vender as gravações a 225 dólares cada, cerca de 200 euros. «Acho uma tarefa gratificante. Vejo isto como uma tentativa de nos ligarmos aos fãs», afirmou o ator à BBC em novembro.
O segundo homem que mais ganhou com esse trabalho alternativo foi o comediante Gilbert Gottfried, conhecido pelas suas atuações na série de filmes O Pestinha, de 1990.
De acordo com o GoBankingRates, o comediante ganhou cerca de 454 mil dólares, o equivalente a 400 mil euros, para cumprimentar os seus fãs. Além disso, de acordo com o The New York Post , Gottfried tem recomendações tão boas que alguns confirmam que os seus seguidores choram depois de vê-lo na câmara. «A minha mãe tem cancro e depois de ver o vídeo, corriam-lhe as lágrimas. Há muito tempo que nada a fazia sorrir», escreveu uma das quase três mil pessoas que já receberam os seus vídeos. Segundo Gottfried, o negócio faz com que os internautas alcancem celebridades que consideravam ‘impossíveis’ e que eles, pelos serviços, ganhem um dinheiro extra.
E não são apenas os artistas que têm problemas financeiros que fazem isso. Por exemplo, Michael Rapaport, conhecido pela sua participação na série Prison Break, tem uma fortuna de oito milhões de euros. No entanto, cobra 157 dólares, o equivalente a 139 euros, por cada vídeo para os fãs. Da mesma maneira, Tom Felton, Draco Malfoy em Harry Potter, possui uma fortuna de 20 milhões. Contudo, pede 703 dólares, o equivalente a 620 só para cumprimentar alguém.
Mas há quem vá mais longe… Myke Tyson cobra mais de 17 mil dólares, o equivalente a 14 mil euros, por um vídeo, enquanto o também ex-pugilista Floyd Mayweather recebe mais de 13 mil dólares, 11 mil em euros, por falar por alguns segundos. Fran Drescher, protagonista da série televisiva The Nanny, e Caitlyn Jenner, socialite e ex-atleta, solicitam cerca de dois mil dólares, o equivalente a 1750 euros, por vídeo e garantem que doam os seus lucros às ONGs que fundaram.
A tecnologia como ferramenta de aproximação
«Figuras públicas são aquelas pessoas que por expor a sua vida privada, pela sua profissão ou por possuir algum talento especial, conseguem formar um público e constituir uma audiência», explica à LUZ Nuno Correia de Brito. O especialista e professor de Media e Sociedade da Universidade Autónoma de Lisboa nota que a Cameo conheceu grande desenvolvimento em contexto de pandemia: «A aplicação tem como principal aspeto de diferenciação a promessa de pôr em contacto direto famosos e o seu público. O facto de sermos obrigados a ficar em casa, permitiu a que alguns produtos e soluções de media se tornassem estrelas, como é este caso. O que se tornou uma oportunidade para artistas e para os seus fãs», explica.
O entretenimento reconfigurou-se, contudo, a transformação dos públicos e das audiências é já um ponto assente desde há alguns anos, «tornando-se mais enfática a partir da introdução de novas tecnologias como a internet e os telemóveis com dados móveis». «Assiste-se hoje a uma fragmentação do público. Hoje falamos de ‘nichos’ e não mais de audiências de massas. Existe, se quisermos, uma conceção diferente dos conceitos de ‘público’ e de ‘privado’. Parece que estas fronteiras estão a dissipar-se», defende. Perante isto, também as figuras públicas, nomeadamente artistas, políticos, participantes de reality shows, entre outros, «estão a usar a tecnologia para construir estes espaços e estas relações».
Por outro lado, acrescenta Nuno de Brito, o público necessita de propostas mais interativas, mais personalizadas, feitas à sua medida e com maior grau de proximidade. «Este facto levou a situações como, por exemplo, o recurso às ‘selfies’ do nosso Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, ou aos concertos mais intimistas de estrelas planetárias como a Madonna, ou ainda, mais recente, o sucesso de Bruno Nogueira nas redes sociais durante a pandemia», elucida, sublinhando que existem, efetivamente, diferenças entre uma cultura de massas e uma cultura que caracteriza uma sociedade da informação, como a que atualmente vigora, «em que a tecnologia reformula e condiciona as nossas relações sociais, assim como a forma como produzimos e consumimos cultura, ou nos organizamos política e economicamente».