No dia 14 de Abril de 1865, Abraham Lincoln, o 16.º Presidente dos Estados Unidos da América, a cumprir o seu quarto ano de mandato, resolveu dar-se a si próprio uns momentos de diversão e deslocou-se ao Ford Theatre, em Washington, para assistir a uma peça que estava na moda, Our American Cousin, da autoria do dramaturgo inglês Tom Taylor. A personagem central da trama acabaria por ser muito bem acolhida pelo público, tanto o britânico como o norte-americano. Lord Dundreary, caricatura de um nobre inglês descerebrado, estúpido como as portas da Abadia de Westminster. Talvez tivesse algo de premonitório, como veremos mais adiante.
Presente no Ford Theatre, mas com um papel bem diferente para interpretar, estava o actor John Wilkes Booth, membro de uma família histórica do teatro durante todo o século XIX, os Booth, um tipo de cabelo despenteado e bigodinho fino correndo ao comprimento e largura dos beiços. John não gostava de Lincoln. Considerava-o um empecilho. Afinal, era um Confederado e ficou furibundo com a medida tomada pelo Presidente de abolir a escravatura no país. Os sulistas estavam por demais habituados a usarem trabalho escravo, e portanto gratuito, para desbravarem os seus imensos campos de algodão. Uma tarefa que destruía as mãos de qualquer um. E os brancos não estavam, decididamente, com vontade de exibir mãos cheias de cicatrizes. Era assim, naquele tempo com muito de sinistro.
Booth fazia parte de um grupelho que, inicialmente, gizara um plano para raptar Lincoln. Depois abandonaram a ideia e decidiram, pura e simplesmente, eliminá-lo. A ele, ao vice-presidente Andrew Johnson e ao secretário-geral William S. Seward. Uma atitude com o seu quê de desesperado após a rendição do general Robert E. Lee, comandante do exército da Virgínia do Norte, às mãos da Union Army, deixando o último foco de resistência sulista por conta do general Joseph E. Jonhston, o único que ainda continuava a lutar como podia. E podia muito pouco. Ainda assim, Booth e a sua trupe convenceram-se de que a morte do Presidente poderia voltar a criar um movimento de esperança ao longo dos estados esclavagistas do Sul. Pois enganou-se. Mas que provocou uma crise sem precedentes em Washington, lá isso ninguém pode desmentir.
No dia 13 de Abril, Abraham Lincoln deu cabo do periclitante sistema nervoso de Booth ao fazer um discurso espontâneo, frente à Casa Branca, alertando para que o próximo passo seria atribuir o direito de voto aos escravos agora tornados livres. Desembestado, John Wilkes juntou-se com uns amigos e soltou uma frase veemente: «Nunca mais este gajo voltará a fazer um discurso!». Ou qualquer coisa do género, num tom verdadeiramente ameaçador.
Dia 14 de Abril de 1865 calhou a uma Sexta-feira Santa. Bem cedo pela manhã, Booth foi ao Ford Theatre recolher a sua correspondência e ficou a saber que, nessa noite, Lincoln, acompanhado pela sua esposa, iria estar presente para assistir à tal peça chamada Our American Cousin. No seu camarote ficariam igualmente o general Ulysses S. Grant (que viria a ser o 18º Presidente dos Estados Unidos) e respectiva mulher. Logo ali tomou a decisão: iria matar Abraham. E, com James W, Pumphrey, o responsável pelos estábulos do teatro, planeaou a sua consequente fuga. A cavalo, pois claro. Em seguida informou os seus parceiros, Powell, Herold e Atzerodt do seu plano. E incumbiu Powell de assassinar o secretário-de-Estado e Atzerodt de dar cabo de Andrew Johnson. Herold ficaria responsável por traçar o seu desaparecimento em direcção à Virginia do Norte, onde seriam recebidos como heróis.
Um tiro no escuro
Em cima da hora, o casal Grant baldou-se. Não tinham grande atracção por teatro e preferiram ir visitar uns primos a Nova Jérsia.
Booth era um frecheiro no teatro do seu amigo John T. Ford. Toda a gente o conhecia, era um actor com fama, representara lá várias vezes, enfim, sentia-se em casa e ninguém queria saber por onde andava. Entrou no salão pelas 22h10, na altura do primeiro intervalo da peça em três actos. Quatro minutos mais tarde, infiltrou-se no camarote presidencial e, praticamente à queima-roupa, atingiu Lincoln na nuca com um tiro de pistola Deringer, calibre 41. O major Henry Reed Ratbone, que ocupara com a sua namorada os lugares deixados vagos por Ulysses S. Grant e Mrs. Grant, saltou-lhe de imediato aos fagotes, mas John Wilkes estava tão endemoninhado que esfaqueou o infeliz. As senhoras Mary Todd Lincoln e Clara Harris assistiram a tudo horrorizadas.
Teatral como sempre foi, Booth saltou do camarote para o palco erguendo a faca ensanguentada e gritando com a voz rouca e embargada: «Sic semper tyrannis!». Uma encenação um bocado bacoca da frase atribuída a Brutus após o assassinato de Júlio César e que significa, «Assim sempre aos tiranos».
Os testemunhos dessa noite são muitos e diversos. Há quem afirme que Booth se limitou a dizer «Maryland, my Maryland», referindo-se à sua província natal, enquanto outros mais prosaicos garantem que na verdade terá berrado: «Enfim, o Sul está vingado!?». Seja lá o que for, momentos como este, ainda por cima decorridos há século e meio, estão sempre sujeitos a debilidades de memória e isso é perfeitamente compreensível. O que parece ser um facto é que, no seu arrojado salto para o palco, Booth partiu uma perna, o que veio a trazer-lhe um sem-número de chatices ao longo da sua fuga. O governo ofereceu 100 mil dólares pela sua captura. Powell e Atzerodt, por seu lado, falharam os seus alvos e nada leva a crer que tenham feito grande esforço para concluir com sucesso as suas tarefas.
Conclusão: Lincoln morreu no dia seguinte e o seu cortejo fúnebre, feito de comboio entre Washington e Baltimore, demorou treze dias, com milhares de pessoas a saudarem-no ao longo da linha enquanto a composição passava. E a confusa fuga de Booth terminou num celeiro de Belle Plain, Virginia, propriedade de um tal Richard H. Garrett. Perante a sua recusa em entregar-se, o grupo de soldados que partira em sua perseguição resolveu tascar fogo ao celeiro. Saindo dele armado, Booth foi abatido pelo sargento Boston Corbett com um tiro no pescoço. Já tinha arranjado sarilhos que chegasse. E eles iriam continuar como se uma maldição tivesse tombado sobre os Estados Unidos da América.
Rapaz pobre
Ao falhar o assassinato de Andrew Johnson, Atzerodt permitiu que ele sucedesse a Lincoln como 17.º Presidente. Andrew nasceu no dia 29 de Dezembro de 1808, em Raleigh, Carolina do Norte, ficando órfão de pai e ganhando de imediato um padrasto, já que a mãe, uma lavadeira de nome Polly McDonought, não tinha paciência para ser viúva. Também não tinha paciência para ser mãe e despachou os dois manos Johnson (William and Andrew) para uma oficina de alfaiate onde passaram dois anos como aprendizes até darem às de vila-Diogo, fartos dos abusos do patrão.
Pobre de nascimento, Andrew Johnson não teve formação escolar e aprendeu a ler por si próprio. Largou a companhia do irmão e instalou-se em Greeneville, Tenessee. Foi dono de uma alfaiataria e começou a dedicar-se à política. A mulher com quem casou, Eliza McCardle tinha apenas 16 anos (ele tinha 18), mas foi de uma influência enorme na sua educação. Ou melhor, na sua civilização. Andrew era um bruto por natureza, de fácies carregado e cérebro um tanto caliginoso. Mas subiu rapidamente num universo que, ao tempo, não exigia grandes ideias e preferia boas argumentações. Em 1841 foi eleito senador do Estado de Tenessee. De 1853 a 1857 foi governador do mesmo Estado.
Em 1857 foi nomeado senador dosEstados Unidos. Quando os Estados do Sul proclamaram a sua cisão, Andrew Johnson declarou-se contra a dissidência. Para os sulistas, tornou-se um traidor. Esteve-se nas tintas. A sua posição valeu a simpatia de Abraham Lincoln que se apresentou às eleições presidenciais de 1864 com ele como vice-presidente. Lincoln sentia que tinha em Andrew a força de um sulista pró-união. Nunca imaginou, certamente, é que este viesse a sucedê-lo. O discurso de tomada de posse de Andrew foi um desastre. Embriagado, tornou-se ininteligível. O médico desculpou-o: aconselhara-lhe umas doses forte de whisky para combater os sintomas da febre tifoide.
Muitos são os que concordam que a presidência de Andrew Johnson, iniciada a 15 de Abril de 1865, o dia que se seguiu ao atentado do Ford’s Theatre, foi a pior de sempre no país. Se a sua vice-presidência durou apenas 42 dias, seria deposto do cargo de Presidente a 4 de Março de 1869. A palavra ‘Impeachment’ cravou-se-lhe na pele como ferro em brasa. Por ordem da House of Representatives, o gabinete inferior do Congresso, tornou-se no primeiro habitante da Casa Branca a ser, por assim dizer, posto na rua antes do final do mandato.
Um homem bruto
A infância atribulada (consta que o pai, Jacob, que além de taberneiro era sineiro e morreu com um ataque cardíaco enquanto fazia soar as matinas) de Andrew e a sua adolescência ainda mais confusa contribuíram para que ele não fosse, verdadeiramente, um animal social. Depois de ter fugido ao mestre alfaiate, James Selby, Andrew e o irmão tiveram a cabeça a prémio. Furibundo por perder mão de obra tão barata, Selby fez espalhar por todo o lado que daria dez dólares a quem lhes entregasse os Johnson. Mas, nessa altura, já eles estavam a salvo, em Cartague. Em seguida, Andrew continuou em fuga para a Carolina do Norte e para uma terra chamada Laurens.
O Juiz de Paz que o casou com Eliza, filha de um sapateiro de Greeneville, dava pelo nome de Mordecai Lincoln. Isso! Primo direito de Abraham. Há sempre uma explicação para que os espíritos se encontrem com a precisão de um embate entre cometas. À medida que o seu negócio prosperava, Andrew começou a ganhar o mau hábito de comprar escravos. E de beber bastante, muito para além dos seus limites. Muito por influência de Abraham, acabaria por libertar os escravos em Agosto de 1863, passando a pagar-lhes ordenado. No ano seguinte, utilizou os seus poderes como Governador para proibir a escravatura no Tenessee.
Abrira as portas para um entendimento com Lincoln, talvez profícuo se este não se tivesse deixado assassinar tão cedo. O que é hoje claro para os historiadores é que Andrew Johnson, a despeito de todo o seu formidável autodidatismo, não estava preparado para ser Presidente dos Estados Unidos. Nem um pouco.
Avançou furiosamente para aquilo que apelidou Presidential Reconstruction, uma série de medidas que obrigavam os Estados adeptos da secessão a promulgarem eleições e a reformar os seus governos. Ignorando os escravos mais antigos, que continuaram a ver os seus direitos triturados pelos donos, Andrew procurou reabilitar-se perante os sulistas mas entrou em conflito com um Congresso maioritariamente Republicano. Os Black Codes – proibições para cidadãos negros, privando-os de direitos básicos – impostos pelos Estados do Sul, levaram o Congresso a optar por acções militares. O Presidente vetou a solução apresentada. O conflito crescia a olhos vistos. Andrew parecia perdido entre os ideais em que fora educado e aqueles a que jurara obediência. Com a aprovação da Quarta Emenda, os direitos civis da população de cor passavam a ser defendidos, mas o Congresso aprovou-a contra a vontade de Johson. Numa espiral de revolta, Andrew desatou a assinar cartas de despedimento para membros do seu governo que considerava não merecerem a sua confiança política. Quando pretendeu demitir o secretário para a Guerra, Edwin Stanton, a guerra escalou. E o diálogo passou a ter um ponto final. O Tenure of Office Act foi igualmente aprovado, reduzindo drasticamente os poderes presidenciais, sobretudo no que dizia respeito à demissão ou substituição de membros do Gabinete. O Impeachment surgiu logo em seguida e Andrew, expulso do Partido Republicano, não conseguiu formar o seu próprio partido nem ser escolhido pelos Democratas para se apresentar às eleições seguintes. Preferiram Horatio Seymour, que acabaria derrotado por Ulysses S. Grant. Afogou o desgosto da derrota numas garrafas de bourbon. Pelo caminho ainda teve tempo de comprar o Alasca à Rússia por 7,2 milhões de dólares. Cerca de 135 milhões nos dias que correm. Belíssimo negócio.