Ucrânia. Russos em Kiev

Com tropas russas na capital, entre apelos a que os civis façam cocktails molotov, o Governo ucraniano mostra-se disposto a negociar não entrar na NATO. Em Kharkiv, prepara-se a guerrilha e no Mar Negro 13 militares ucranianos foram massacrados após recusarem a capitulação.

Vladimir Putin estava decidido a conseguir o que queria, a bem ou a mal. Nem que isso implicasse fazer chover mísseis, bombas e disparos de artilharia sobre os ucranianos, espoletando a maior guerra na Europa desde a II Guerra Mundial. Até agora, a sua aposta não lhe está a correr mal.  Com as tropas russas a avançarem em quatro frentes, combatendo nos subúrbios de Kiev, o Governo ucraniano, sem grande esperança de bater belicamente a Rússia, já se mostrou disposto a negociar  a neutralidade, afastando-se da NATO a troco da paz. Se isto chegará para satisfazer o Kremlin, saudoso da grandeza do império russo, só Putin sabe.

«Se Moscovo diz que eles querem ter negociações, incluindo quanto a um estatuto neutral, nós não temos medo disso», assegurou Mykhailo Podolyak, conselheiro do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, à Reuters, enquanto Kiev era bombardeada, nesta sexta-feira, com as forças russas a prepararem-se para tomar de assalto a capital. «A nossa preparação para o diálogo faz parte da nossa persistente busca pela paz», afirmou Podolyak.

Mesmo que a Ucrânia opte pela via da neutralidade, sob pressão da ofensiva russa, parece certo que tão cedo não deixará de ser ameaçada pelo seu vizinho maior. Até a Finlândia – que optou em referendo por não se juntar à NATO no início da Guerra Fria, para não hostilizar a União Soviética, tendo começado a falar abertamente em juntar-se à aliança recentemente, no rescaldo da anexação da Crimeia – foi ameaçada por Putin com «sérias repercussões político-militares» caso se alie à NATO, nas palavras da porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, na sexta-feira. Um aviso sombrio, sobretudo face à velocidade da tomada da Ucrânia.

Não é de espantar que a ofensiva russa seja avassaladora para as tropas ucranianas. Apesar de contarem com cerca de 145 mil soldados, mais 900 mil reservistas, que já foram chamados por Zelensky a pegar em armas, a sua grande fragilidade é a falta de capacidade antiaérea, que tem permitido aos russos destruir forças ucranianas à distância, atingindo-as com precisão.

Se é a verdade que as forças armadas da Ucrânia já não são as mesmas que foram desbaratadas pelos separatistas – apoiados por «pequenos homens verdes», as tropas especiais russas infiltradas em Donbass – em 2014, contando com anos de experiência e com o envio de armas do Ocidente, em particular mísseis portáteis antiaéreos e antitanque, a Rússia também renovou as suas forças armadas. Abandonaram o seu velho equipamento soviético e adotaram a doutrina da «guerra sem contacto», como lhe chamam os generais russos, testada na Síria, durante a sua intervenção para apoiar o regime de Bashar Al-Assad, e que vemos agora ser aplicada na Ucrânia.

Assalto a Kiev Nem a iminente queda de Kiev fez Zelensky arredar pé. Este antigo comediante – um dos mais populares do país, talvez equivalente aos Gato Fedorento em Portugal – chegou ao poder após fazer de Presidente na série televisiva Servo do Povo, mas soube adequar-se ao papel de chefe de Estado em tempo de guerra.

Zelensky descobriu uma dignidade, uma postura de estadista que nem os seus apoiantes sonhavam que possuísse – «Se nos tentarem tirar o nosso país, a nossa liberdade, a vida dos nossos filhos, defenderemo-nos», garantiu nesta quinta-feira, mantendo um olhar duro, num discurso aclamado. «Quando nos atacam verão os nossos rostos. Não as nossas costas, mas os nossos rostos» –   e recusou-se a fugir da capital com a sua família, mesmo após revelar que as secretas ucranianas descobriram uma conspiração do Kremlin para o assassinar. «O inimigo identificou-me como alvo número um», acusou o Presidente ucraniano, esta sexta-feira. «Eles querem destruir a Ucrânia politicamente ao destruir o chefe de Estado».

Nesse mesmo dia, começavam combates rua a rua no norte de Kiev, quando uma coluna de blindados russos oriunda da Bielorrússia, percorrendo a margem oeste do rio Dniepre, entrou no bairro de Obolon. Tudo indica que o cerco aos comandos russos que tomaram a base aérea Antonov – deixaram este aeroporto crucial para a defesa da capital inoperacional nas primeiras horas da guerra, chegando de helicóptero, disparando metralhadoras do ar com as portas abertas, antes de descerem em rapel, a coberto do fogo de dois caças contra unidades terrestres ucranianas, avançou a France Press – foi quebrado.

Famílias inteiras acorreram a abrigos, em pânico, enquanto um caça russo era abatido nos céus de Kiev, despenhando-se contra um prédio e incendiando-o, fazendo pelo menos oito feridos, segundo as autoridades. Já o presidente da Câmara, Vitali Klitchko, antigo campeão do mundo de boxe de pesos pesados, apelou à população para que fizesse cocktails molotov para enfrentar o poderio militar russo. «Sabotadores já entraram em Kiev», alertou Klitchko, citado pela Reuters, pouco após se ouvirem disparos próximos da sede do Governo. «O inimigo quer deixar a capital de joelhos e destruir-nos».

Ofensiva avassaladora, com guerrilha na retaguarda Muitos dos quase 1,5 milhões de habitantes de Kharkiv, no nordeste, perto da fronteira russa, sabem bem que a sua cidade é dos prémios mais desejados por Putin.

«Não posso dizer que não estou assustado, mas este é o nosso destino», explicou um mecânico à Foreign Policy, quando descarregava kalashnikovs e caixas de munições de um carro, junto com outros civis que se voluntariaram a fazer guerrilha na retaguarda das  forças russas. Alguns já tinham experiência de guerra, regressando ao campo de batalha após combaterem os separatistas russos de Donbass, na guerra civil que se seguiu à revolução Euromaidan, em 2014, e à anexação da Crimeia. «Estamos à espera dos russos e vamos dar-lhes as boas-vindas ao inferno». 

Enquanto as forças russas no norte avançavam vindos da fronteira bielorrussa, ou tomavam os escombros de Chernobyl – foi registado um pico de radiação, provavelmente porque a passagem de tanques levantou poeira radioativa, segundo as autoridades nucleares ucranianas – rumo a Kiev, era Kharkiv que sofria a ofensiva mais pesada. Mais de meia centena de habitantes foram mortos nos bombardeamentos a Kharkiv só na quinta-feira, quando forças russas tentavam cercar a cidade.

Em simultâneo, a linhas ucranianas em Donbass parecem estar a resistir à ofensiva das milícias separatistas, que contam com um contingente estimado entre os 15 e os 30 mil homens. Mas o caso pode mudar de figura rapidamente se as tropas da Ucrânia se virem atacada na retaguarda pelas forças russas que desembarcavam no mar de Azov, para cercar Mariupol, um dos principais polos industriais da Ucrânia, a uns meros 15 km da linha da frente.

Já no mar Negro, forças anfíbias estão na retaguarda de Odessa, o principal porto do país. Uma cidade que, à semelhança de Mariupol, era considerada particularmente vulnerável, dado as tropas russas contarem com apoio naval, devido à dominância que a Rússia mantém nestas águas, graças às suas bases na Crimeia.

Já a NATO tem sido criticada pela sua inação, com um dos seus membros, a Turquia, a ignorar os apelos da Ucrânia para que bloqueie o acesso da Rússia aos estreitos do Bósforo e Dardanelos – únicas vias de entrada no Mar Negro, cujo fecho impediria que a frota russa seja reforçada pelos navios estacionados no Báltico – e tendo os navios da NATO saído da região um mês antes desta guerra, talvez para evitar um confronto acidental entre potências.

Se Putin tem alguma esperança de que os militares ucranianos se virem contra o Governo de Zelensky, tendo-lhes pedido que se revoltem contra esse «gangue de drogados e neo-nazis» e os impeçam de «usar os vossos filhos, as vossas mulheres e pais como escudos humanos», perante as câmaras de televisão, na sexta-feira, o sangue-frio dos 13 guardas costeiros da ilha de Zmiinyi, mais conhecida como ilha das cobras, no mar Negro, certamente que o fará pensar duas vezes. Intimados a renderem-se por um navio de guerra russo ao largo da pequena ilha de 200 m2 que defendiam, estes guardas não hesitaram. «Navio de guerra russo, vai-te ***», respondeu um deles pelo rádio, mostra um áudio divulgado pelas autoridades ucranianas. Foi a sua última mensagem, momentos antes de a ilha ser varrida por um bombardeamento que não deixou sobreviventes.