A guerra e a moral

O mundo está neste momento a condenar a Rússia pela injustificada invasão de um país soberano e independente. Mas o mesmo mundo apoia o uso da força militar por parte dos invadidos, legitimando-o com a necessidade de defender o seu território, a sua liberdade, o seu povo. A mesma guerra tem dois protagonistas, nesta história…

Por Sofia Aureliano

Sete dias volvidos do início da invasão da Rússia à Ucrânia, muito já se disse e escreveu sobre a guerra. A estratégia de ataque de Putin. A escassez de meios da Ucrânia. Os objetivos do invasor. O destino a curto prazo do invadido. A moral da guerra. Ou a ausência dela.

Do ponto de vista geopolítico, nada direi que acrescente valor ao tanto que tem sido dito e escrito. De nada servirá alimentar o tema com mais afirmações num cenário em que o que mais sobressai são as incertezas.

1. Falemos então da moral. Há moral nesta guerra?

A questão é mais abrangente do que isto. A guerra, que aqui vamos circunscrever à delimitação clássica de conflito entre estados, existe desde tempos sem memória e é paralela à existência humana. Tem, invariavelmente, um custo muitíssimo elevado em vidas humanas. Mortas, feridas, desalojadas. Pessoas a quem foi roubado o futuro. Este desfecho, sendo incontornável, pelo menos, para uma das partes (mas quase sempre para as duas) não parece coadunar-se com dialéticas da moralidade.

Mas são estas consequências de atos que se acredita que possam ter justificação? Pensemos assim: o mundo está neste momento a condenar a Rússia pela injustificada invasão de um país soberano e independente. Mas o mesmo mundo apoia o uso da força militar por parte dos invadidos, legitimando-o com a necessidade de defender o seu território, a sua liberdade, o seu povo. A mesma guerra tem dois protagonistas, nesta história que globalmente se conta. O vilão sem moral e o herói improvável cujo bom caráter se engrossa à medida que vai dando o corpo às balas. Nesta narrativa, a mesma guerra tem e não tem moral.

2. Realismo vs. Pacifismo. Duas visões da guerra.

Putin é um seguidor da “realpolitiks”, escondida por trás da máscara de imperativo ideológico. Só um defensor do realismo como única forma de fazer política encara como exclusivo e preponderante o preceito de que o que conta na relação entre estados é o direito à liberdade do mais forte. De pensamento e de ação. Logo, qualquer norma de natureza moral que limite a prossecução do que é considerado o melhor interesse do país é maléfica e não pode ser tida em conta.

Para os realistas, como foram Maquiavel, Hobbes ou, mais recentemente, Kissinger, os estados não são indivíduos e regem-se por dinâmicas de poder e de interesse coletivo. Perlo que a questão da moralidade nem se coloca.

Pelo contrário, o mundo ocidental condena a Rússia com base na teoria pacifista, que não separa a guerra da moral. Para os pacifistas, sustentados em pactos de entreajuda entre estados democráticos e em alianças de instituições internacionais, é preciso pôr fim a qualquer guerra. Todas as guerras são incorretas e desprovidas de qualquer justificação, os seus custos são sempre demasiado elevados e conduzem à violação de direitos inalienáveis e absolutos. Como o direito à vida.

Mesmo que as armas ainda estejam delimitadas por fronteiras terrestres, este conflito já é de escala mundial. Opõe o realismo russo ao pacifismo ocidental.

Com assento em duas tão distantes visões da guerra e, consequentemente, duas formas opostas de a avaliar, como se pode augurar o diálogo racional entre russos e ucranianos (ou ocidentais)?

É obrigatório reconhecer os fundamentos dos dois protagonistas para que se consiga construir uma base de entendimento. Porque uma divisão maniqueísta do conflito não contribuirá para o seu fim. Mesmo que não consigamos compreender uma das partes ou nos pareça impensável tolerá-la, esse esforço tem de ser feito. É um dos colossais desafios da gestão do conflito.

3. A Guerra acaba quando uma das partes vence e a outra perde?

Recorrendo à analogia da guerra como um jogo de xadrez, tem sido dito que Putin segue estrategicamente à frente, conquistando o território do adversário e comendo-lhe mais peças. Procura incessantemente o xeque-mate, com ameaças diretas a Voldomyr Zelenskyy. Mas o que acontece se conseguir matar o rei? O jogo acaba?

Imaginemos o pior cenário: Putin consegue dominar a capital e fazer cair o governo. O povo ucraniano deixará de resistir? O Ocidente deixará a Rússia ocupar e governar (intermediada ou não por governos separatistas) o território ucraniano? E para onde seguirá Putin?

A História já demonstrou que o dia seguinte é muitíssimo pesado para invadidos mas também para invasores. Hoje, há uma hegemonia da visão pacifista e pratica-se a ostracização de quem quer e faz a Guerra. A Rússia caminha para o isolamento total e as sanções económicas e políticas irão tornar essa condição sobejamente óbvia no dia-a-dia do povo russo. Sendo esta uma invasão estrategicamente justificada pelo intento de prosseguir o melhor interesse do estado, como poderá Putin legitimar um balanço final negativo? Poderá o realismo político manter-se viável perante a evidência de consequências prejudiciais sem precedentes para o país?

4. As novas armas.

O século XXI, globalizado e interdependente, mune a humanidade de armas potentes no combate contra a Guerra. Se bem utilizadas, poderão sustentar-nos algum otimismo na antecipação do fracasso das intenções de Putin, e de qualquer outro estadista que padeça da mesma megalomania. Hoje, nenhum país é suficientemente forte para viver isolado. Nenhum exército é suficientemente grande para sobreviver contra o mundo ocidental.

Putin, que não é burro, saberá fazer esta análise. Ou será forçado a fazê-la. Esperemos que com a máxima rapidez. E que, imperando o pacifismo, seja imputada ao líder russo a responsabilidade por todo o sangue derramado. Com um realismo dissuasor.