É impossível passar na Calçada da Tapada, em Alcântara, sem reparar na entrada do restaurante A Tapadinha. A mancha vermelha no meio de prédios da cor do asfalto salta à vista quase como se “gritasse”: “Dobro Pozhalovat” (em português: “Bem vindo e Aproveite!”). E é precisamente dessa forma que o restaurante se apresenta na sua página de Facebook: “Não pode haver melhor convite para o restaurante russo A Tapadinha que esta saudação tradicional que acolhe qualquer visitante a uma casa Russa”. Segundo esta descrição, “a geografia, bem como a religião, tornaram os povos do Antigo Império Russo muito hospitaleiros”. E há uma boa explicação para isso: “Fora das cidades, as distâncias são grandes, agravadas pelo gelo do inverno ou pelo sol abrasador do verão, por isso o visitante é sempre recebido com grande generosidade, como um convidado especial”.
De portas abertas há mais de 25 anos, A Tapadinha tornou-se uma verdadeira embaixada da gastronomia e da cultura russas onde as refeições são regadas a vodca. Mas e se os clientes deixassem de aparecer? O restaurante que abriu em 1994 “devido à pouca variedade de restaurantes étnicos ou exóticos” e que considerava que “o paladar português estava preparado para novas aventuras gastronómicas” viu-se agora, por prudência, obrigado a retirar a sua “identidade da porta”, afastando-se de “qualquer ligação com a Rússia”. E se antes convidava os clientes a transportarem-se para o país dos cossacos, atualmente teme pelo fecho de portas graças a essa já velha associação.
A discriminação A porta está fechada, dando a impressão que o restaurante se encontra encerrado. Contudo, uma pequenina e quente luz no seu interior faz-nos ficar. Ao aproximarmo-nos da entrada, uma senhora sorridente sai do interior. “As portas eram ocupadas por papéis com a palavra Rússia, comida russa. Com o despoletar da guerra, os autocolantes foram arrancados”, começa por explicar ao i Isabel Nolasco, a proprietária portuguesa do restaurante.
Se antes, ao entrarmos pelas portas encarnadas, éramos recebidos com movimento, alegria e barulho, neste momento “desapareceu tudo como se nós fossemos tipo pedintes”, lamenta a responsável. A situação de guerra que se vive atualmente chegou até ao seu espaço, com os clientes a deixarem de aparecer e com os chefs a ficarem descontentes. “Eu sou portuguesa, o nosso chef é ucraniano, a sua mulher, que também é nossa colaboradora, é ucraniana, os nossos empregados extra (que trabalham ao fim de semana) também. Pelos vistos, vão deixar de trabalhar. Com isto, as pessoas estão a fugir, por causa da má informação”, explica, admitindo já não saber o que fazer. “Falar de guerra? O chef não quer falar com ninguém. Tem os pais na Ucrânia, ‘debaixo de fogo’, e diz que só nos procuraram agora, ao fim destes anos todos, para falar de guerra quando nunca ninguém quis falar da nossa comida e do nosso trabalho.
Não faz sentido nenhum”, lamenta. Isabel que afirma ser “contra todo o tipo de guerra”, pede que os olhares estejam atentos “aos outros tipos de guerra” que existem. “Isto está a influenciar gravemente o nosso negócio. Já tirámos o ‘russo’ da porta, porque não queremos ter quaisquer ligações ou ser associados… E não é só ao negócio. Isto está a influenciar-nos psicologicamente”, acrescenta, lembrando que primeiro, “o restaurante sofreu com as consequências da covid-19 e agora, sofre com a discriminação”. “Ninguém está satisfeito. Daqui a bocado estamos com Kiev à porta”, alerta. “Estamos a ser discriminados. O que está a acontecer é bullying! Ainda ficamos todos sem trabalho”, afirma a proprietária.
A igreja como armazém Em Arroios, o ambiente é outro. As vozes que se misturam e ecoam na Igreja Ucraniana de Lisboa não deixam ninguém indiferente. O silêncio que normalmente caracteriza o espaço foi substituído por vozes que se tentam orientar no meio de caixotes cujo destino faz “estremecer” quem as ouve. A distância é encurtada por mãos solidárias que há seis dias e mesmo a quilómetros de distância trabalham das 10 às 22 horas, como se a guerra estivesse aqui. A Igreja está cheia, o espaço está dividido em secções e a passagem é difícil de se fazer sem que se atrapalhe a organização.
“Tudo o que está em sacos é para tirar! Isto é para crianças, isto também, isto também”, ouve-se ao longe. “Desculpa! Isto está sempre uma grande confusão”, explica ao i uma das voluntárias ucranianas sem tirar os olhos do chão, como se todo o tempo fosse precioso.
“Vivo em Portugal há 22 anos e estou aqui desde o primeiro dia, assim que começou a guerra. Venho às dez da manhã e volto para casa às dez da noite. Tentámos organizar todas as doações dos portugueses e acho que faz sentido começar por agradecer toda a onda de solidariedade que temos sentido nestes dias tão tenebrosos. Toda a gente vem de mangas arregaçadas para ajudar!”, explica, admitindo sentir-se muito nacionalista. “Sinto-me muito nacionalista, muito ucraniana”, continua. “Mas, ao mesmo tempo, sou metade portuguesa e, nestes dias, até me custa ouvir russo. Tenho dito às pessoas que me são próximas para falarem ou português ou ucraniano. Não consigo ouvir russo! Não quero ouvir russo! É uma ferida muito grande aberta no meu peito. Tenho família lá”, sublinha, revelando que a sua melhor amiga, que ainda lá se encontra, há dois dias que não lhe atende o telemóvel. “Muita preocupação. Um grande aperto. Tenho medo… Mas estamos aqui, nesta frente, a tentar fazer de tudo para que a nossa ajuda contribua de alguma forma”, remata, ao despedir-se com o olhar e virando-se para outra pilha de caixotes.
Numa das portas, uma rapariga de olhos verdes que carrega sacos em ambas as mãos é solicitada para falar. “Na quinta-feira acordámos sobressaltados com uma chamada que nos fez chegar a informação de que a guerra tinha começado”, conta ao i Yulia, voluntária ucraniana de 28 anos. Os três primeiros dias, diz-nos, foram os mais complicados: “Temer pela vida dos nossos familiares é um pesadelo. Chamadas para toda a gente, tentar manter o contacto… Foi muito complicado gerir os primeiros dias. A cabeça parecia que ia explodir de tanta pressão. Noites em branco, a fome desapareceu”- Nessa altura, a sua família pensou que, apesar do aperto, tinha de “reagir”.
“Começámos a juntar coisas e a tentar ajudar de alguma maneira. Vim para aqui no domingo e é aqui que tenho estado desde manhã até à noite. Sinto-me útil e sinto que precisava de sentir isso. Não é fácil estarmos aqui quando parece que o mundo está a acabar num outro local que nos é tão ‘próximo’”, reconhece com lágrimas nos olhos, esclarecendo que apesar disso não diminuir a “dor, o medo, a angústia”, ajuda pensar que está a ajudar pessoas da sua “terra”.
Nesta altura, em circunstâncias normais, a jovem estaria de férias. Contudo, nesta situação, seria impossível aproveitá-las: “Deixei-as de lado, porque acho que não seria justo… Há pessoas que estão a passar mal”.
Relativamente à dinâmica de trabalho, Yulia esclarece que “as coisas não param de chegar”, o que torna a organização mais complicada. “As coisas estão divididas em secções. Deste lado é a comida, daquele lado coisas de higiene. Depois temos a parte dos medicamentos e na entrada todo o vestuário. Temos tentado gerir as coisas desta maneira. O que nos entristece no meio de tudo isto é o lixo. As pessoas dão muito lixo. Isso dói. Mas na verdade não interessa. Ou é vidas ou é lixo. Portanto, acho que preferimos vidas”, esclarece.
Na rua, a jovem admite estar rodeada de “solidariedade”. “As pessoas não me dizem nada, mas sinto no olhar. Reparam que sou ucraniana e tenho-me sentido muito abraçada. No olhar vê-se o sentimento de compaixão das pessoas, isso é muito bonito”.
Os pequenos mini-mercados ucranianos Ao que parece, esse sentimento é partilhado não só por voluntários ucranianos, mas também pelo pessoal que trabalha em mercearias ucranianas, muitas delas transformadas atualmente em “armazéns”. Eleonora é funcionária do Mini Mix, na Rua Major Afonso Palla (mais conhecida por Rua das Estátuas), em Algés. O mini-mercado é pequeno e as paredes brancas são ocupadas por uma linha com as cores azul e amarelo.
De cabelos avermelhados e lisos e uma blusa cor-de-rosa, logo se disponibiliza para falar. Tal como as voluntárias da Igreja Ucraniana, a sua primeira palavra é de agradecimento. “Aquilo que nós sentimos nos últimos tempos é um grande apoio por parte de todas as pessoas que por aqui passam, desde ucranianos, pessoas da Moldávia e principalmente muitos portugueses que cá vêm apenas para nos dar apoio. Perguntam o que é que é preciso, o que é que podem fazer, como é que podem ajudar, que podemos sempre contar com eles”, admite emocionada, lembrando que muitos também não conseguem conter as lágrimas. Os encontros com pessoas russas também são “muito emocionantes”. Chegam ao estabelecimento e pedem perdão, dizem que têm vergonha de olhar para os seus olhos: “Portanto estamos a sentir que não estamos sós. Há uma união imensa. Já enviámos três camiões humanitários: um com medicamentos para a fronteira de Lviv, dois para outra cidade”, conta. Eleonora revela ainda que muitos a interrogam sobre os produtos russos vendidos na loja: “Os nossos patrões bloquearam tudo em protesto ao que está a acontecer na Ucrânia”.
A funcionária compara o terror sentido agora com o que sentiu em 2014: “Eu sou da zona onde começou a guerra em 2014, em Sloviansk, que foi a primeira cidade tomada pelas tropas separatistas e foi a primeira cidade que foi libertada pelas tropas ucranianas. Na altura, nós achávamos que não existiria pior do que isso. Ficávamos nos carros, fugíamos… As pessoas passaram coisas terríveis. Mas no início não havia a quantidade e qualidade de armamento que há nos dias de hoje”, alerta, defendendo que “está a acontecer o mesmo que há oito anos, mas muito pior”.
“Estamos a assistir a um crime de guerra, um crime de humanidade, porque tudo aquilo que está a passar na televisão russa, ou bielorrussa é mentira. As pessoas estão também a ser enganadas, manipuladas. O Presidente da Rússia já perdeu a noção. Não quer apenas ser o Presidente da Rússia, quer ser o ‘César’ do mundo inteiro e isso é muito perigoso!”, denuncia Eleonora. As pessoas, frisa, “devem estar bem alerta”, pois acredita que “isto será só o princípio”.
“O homem tem grandes apetites, grandes ambições. Ele tem tomado os sítios, devagar… Quer dominar tudo e não vai acabar na fronteira da Ucrânia. Precisamos de ajuda. Condeno isto que está a acontecer… não tenho direito a isso, mas condeno”, lamenta. Na sua opinião, Portugal “não precisa de mandar homens”. “Não queremos colocar mais pessoas em risco, ajudem-nos com armamento e fechem o espaço aéreo da Ucrânia, porque se eles não conseguem levantar aviação e bombardear, os nossos homens tratam deles em terra”.
Tal como o Mini Mix de Algés, em Alvalade, na Avenida do Brasil, o Mix Markt optou por retirar os produtos russos das prateleiras. “Quebrámos com os produtores da Rússia e passámos a ajudar. Por exemplo, damos sacos com produtos a quem precisar, recolhemos vestuário, comida e medicamentos para enviar para a Ucrânia”, explica uma funcionária ucraniana que prefere manter o anonimato. Conta que os seus pais e sogros estão também “debaixo de fogo”. Até agora, conseguiu comunicar com todos os dias. “Estou preocupada, claro! O meu sobrinho com 27 anos também lá está… Para nós isto é um terror. Grata por toda a ajuda e solidariedade!”, sublinha.
“As coisas não param de chegar” Além dos armazéns e mercearias, as pessoas também puderam começar a ajudar através de estabelecimentos de cosmética. O salão Irina Stetik & Beauty, em Campo de Ourique, é um deles. Irina Dorosh, a proprietária, vive em Portugal há 20 anos e sempre se sentiu bem acolhida. Agora, no meio dos aparelhos de tratamentos e vernizes, estão também as caixas repletas de produtos para enviar para a Ucrânia. “Vi um apelo numa página de Facebook de Campo de Ourique e decidi chegar-me à frente. Nesse momento ninguém estava a conseguir receber as ajudas. Escrevi o meu nome, disponibilizei-me para receber as coisas e acabei por transformar o meu salão num pequeno armazém. Passei a responsabilizar-me por isso”, explica. Logo na segunda-feira sentiu “uma onda muito grande de solidariedade tanto por parte de clientes, como amigos e pessoas que não conhece “de lado nenhum”. “É maravilhoso, muito emocionante!”, afirma.
Até agora, conta, já seguiram mais de 50 caixas com medicamentos, comida e vestuário. “Só na segunda-feira foram 17 caixas, quase 300 quilos. Nestes dois últimos dias foi o dobro ou o triplo. Por exemplo, o meu dentista, cedeu uma data de pastas de dentes, caixas, medicamentos. As coisas não param de chegar”, explicou ainda. Na Ucrânia “deixou” primos, a sua irmã e os seus sobrinhos: “Até agora tenho conseguido contactá-los, mas hoje vi nas notícias ucranianas que eles também estão a conseguir destruir algumas redes. Não sei até quando conseguirei, isso deixa o meu coração apertado”.
Além do restaurante A Tapadinha, a população russa em Portugal está a ser alvo de ameaças e discriminação desde que se iniciou a guerra na Ucrânia. Contactada pelo i, a presidente da Associação Russa Pushkin, Anna Pogrebtsova, afirmou não conseguir falar mais sobre o assunto. Contudo, a outros meios de comunicação, já havia admitido que as ameaças têm chegado sob a forma de telefonemas, mensagens de texto ou comentários nas redes sociais, por parte tanto de ucranianos como de cidadãos portugueses.
À noite, o movimento acalma. Contudo, não é preciso ouvir as vozes que ecoavam na igreja, ou olhar para os rostos de quem adormece com o pensamento nos seus parentes, para compreender que a angústia está para durar. Até porque, nestes tempos difíceis, não há só solidariedade – há também espaço para a discriminação e as divisões, mesmo longe do epicentro do “pesadelo”.