Por Sofia Aureliano
Atualmente, já se questiona a pertinência da existência de um Dia Internacional da Mulher. Corre, em muitos fóruns, o argumento de que a celebração de um género é contraproducente com a prossecução da agenda de defesa da igualdade entre homens e mulheres. Mas os próprios movimentos feministas acabam maioritariamente por ser favoráveis à efeméride. Poderemos interrogar-nos se tal não se afigura paradoxal, na medida em que é uma apologia da distinção. Mas, se observarmos atentamente, o cerne da luta feminista tende a fomentar muitas discrepâncias, sob o mote de que é necessário favorecer o elo mais fraco para promover o equilíbrio.
A apropriação deste dia por qualquer corrente ideológica é desadequada e diminui a sua relevância, afastando-o da sua real motivação. Não há consenso sobre a origem exata do Dia Internacional da Mulher. Sabe-se que remonta ao início do século XX, nos Estados Unidos, associado à luta de mulheres operárias por um salário equitativo e na defesa de direitos fundamentais como o direito ao voto. Décadas mais tarde, foi a Rússia que motivou mais uma era de defesa dos direitos femininos, à luz da doutrina comunista.
O Dia, como hoje o conhecemos e celebramos, foi criado pelas Nações Unidas já na década de 70, com o propósito de assinalar os direitos que as mulheres já conquistaram, sem desviar o foco do caminho que ainda tem de ser trilhado. A igualdade de género é, de resto, um dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, para 2030, integrando assim “a lista das coisas a fazer em nome dos povos e do planeta”. No futuro que se almeja, homens e mulheres serão seres humanos, sem distinção de direitos nem deveres.
Onde estamos?
O nosso olhar ocidental pode limitar-nos o alcance, justificando alguma miopia na interpretação dos factos. Somos filhos do privilégio e, pelo continente Europeu, são mais as vitórias a celebrar do que os obstáculos no caminho.
Neste contexto, contudo, Portugal volta a estar na cauda da fila. A diferença salarial de género demonstra uma disparidade de 14% entre homens e mulheres – o equivalente a menos 50 dias de trabalho remunerado, por ano. E, por cá, em cada 100 diretores, apenas 22 são mulheres. No caso de administrações de empresas, o número reduz para dez, tornando-se ainda mais distante do resto dos estados-membros.
Nas empresas públicas, empresas cotadas em bolsa e no Parlamento português o rácio cresce para um terço, mas por imposição legislativa. Goste-se ou não se goste, a lei minimiza o fosso. Apesar disso, não se pode concluir que a igualdade esteja atingida.
Olhando para o resto do mundo, “do mal, o menos”. Há muito piores lençóis. Os cenários são muito áridos e o caminho a percorrer tem muito mais pedras.
Na Índia, apesar de estar legalmente previsto a punição contra qualquer tipo de violência contra mulheres e raparigas, metade das mulheres são vítimas de agressões “justificadas” pelos maridos e as meninas são vendidas aos dez anos, como se fossem objetos, para casar. Já na Arábia Saudita, a palavra de um homem vale pela de duas mulheres, não existe nenhuma lei contra a violência doméstica, e conduzir é um direito exclusivo dos cidadãos de primeira classe. Os homens.
No México, o país que “inventou o machismo”, uma em cada quatro mulheres é vítima de abusos sexuais por parte do parceiro, centenas são mortas impunemente em pleno século XXI e, sobretudo nas comunidades mais rurais, as mulheres nasceram para cuidar da casa e dos filhos. O mercado de trabalho não está ao seu alcance, assim como qualquer esperança de independência.
Na China, durante décadas, praticou-se impunemente o infanticídio de bebés do sexo feminino, prevalecendo, nos dias que correm, a primazia do filho-homem em direitos adquiridos. Ainda hoje, a China tem o mais elevado rácio de masculinidade à nascença.
Na Turquia, as raparigas são forçadas a casamentos na infância e adolescência e à escravatura doméstica. Continuam, em adultas, a ser vítimas de homicídio em nome da honra e da castidade. A grande maioria não tem rendimento próprio nem sabe ler nem escrever.
No Brasil, considera-se que se fizeram progressos substantivos na defesa das mulheres, com a violência a ser condenada, em todas as suas formas. No entanto, é no universo feminino que são mais evidentes as desigualdades sociais, como a pobreza extrema, a dificuldade de acesso ao ensino e à saúde.
No Japão, prevalece a cultura patriarcal que limita o acesso das mulheres aos mercados de trabalho depois do casamento e, sobretudo, depois de terem filhos. O seu papel circunscreve-se à gestão do dia-a-dia familiar. Na Coreia do Sul, em que o sistema patriarcal também impera, mais de 40% das pessoas considera que, numa situação de desemprego, os homens têm mais direito a trabalhar do que as mulheres, sendo justificável que estes recebam mais do que elas, pelo exercício da mesma atividade.
Na Austrália, a legislação existe mais não alcança o domínio prático. Uma em cada três mulheres é vítima de violência física e 20% reportam episódios de violência sexual. Apesar de ser considerado “Novo Mundo”, o país apresenta um colossal fosso salarial entre géneros, praticamente imutável nas últimas duas décadas.
Finalmente, a Rússia. País a que o Dia Internacional da Mulher também deve, em parte, as suas origens. No império de Putin, é elevado o número vítimas de tráfico e a violência doméstica contra mulheres é uma prática comum. Não punida por lei. No mercado de trabalho, até 2021, eram 456 as ocupações que as mulheres estavam proibídas de exercer, por serem consideradas perigosas. Agora, a lista foi atualizada para 100, mas continuam vedadas a profissões como bombeira ou mergulhadora. Podem, porém, ir à guerra e combater pela pátria, existindo mais de uma dezena de batalhões exclusivamente femininos no exército russo.
Considerando esta moldura – e estes são apenas exemplos residuais de desigualdade -, parece inquestionável que o Dia Internacional da Mulher continua a fazer sentido. Não, como uma data para receber flores, presentes ou serem declamadas odes de fascínio pelo feminino. Mas mais um momento para se refletir no que ainda não foi feito e nos é inteiramente devido. Não porque o merecemos. Mas porque já devia ser nosso. Por defeito adquirido.