Há uma cena extraordinária num daqueles filmes portugueses dos anos 50. O filme chamou-se O Comissário de Polícia, foi realizado por Constantino Esteves, e tinha António Silva no papel de Conselheiro Faustino, um daqueles aldrabões de vinte e quatro patas. Às tantas, confrontado pela mulher em relação a uma das suas infinitas trapalhices, ouve o que não queria: «Tu! Tu mentiste-me!». E ele, comprometido, submisso, gaguejando: «Menti… Bem, vá lá, faltei à verdade…».
Hieronymus Karl Friedrich, o verdadeiro barão de Münchhausenn, nasceu na cidade de Bodenwerder, no Eleitorado de Hanôver, no dia 11 de Maio de 1720. Filho de famílias finórias, os Brunswick-Lüneburg, nunca imaginou que o seu nome arrebicado duraria para sempre. Começou por ser um simples pajem de Anthony Ulrich II of Brunswick-Wolfenbüttel, um duque que atingiu o posto de generalíssimo dos Exércitos Russos, casado com Elisabeth Katharina Christine von Mecklenburg-Schwerin, conhecida por Anna Carlovna, ou por Anna Leopoldovna, regente da Rússia no ano que se seguiu à morte do filho, o czar Ivan IV, um pobre pateta que a mãe manteve encarcerado até ao fim da sua infeliz existência.
Convenhamos que ser pajem não é lá das tais coisas. Para além de andarem às ordens do chefe, são obrigados a cortar o cabelo à tigela, o que lhes dá um aspeto bastante cretino. Mas enfim, Hieronymus foi um pajem dedicado até ser chamado a cumprir as suas obrigações militares na guerra russo-turca de 1735-39, um conflito que teve início numa ofensiva do Império Otomano sobre a Pérsia e que acabaria por se estender até à Crimeia numa luta pelo domínio sobre os portos do Mar Negro. Portou-se como um homem.
De tal forma que, no final da guerra, foi nomeado chefe do regimento de cavalaria russa de Brunswick e, em seguida, promovido a tenente, instalado em Riga. Farto de fardas e de cavalos, recolheu-se nas suas propriedades de Bodenwerder com o título de barão, que segundo o nosso Camilo Castelo Branco exigia um grau elevado de estupidez.
Conta a realidade que Hieronymus Karl Friedrich não era tão estúpido como o título parecia indicar. Dado a festarolas e a jantares opíparos, aproveitava as fases prós-prandiais para soltar a língua e contar episódios da sua vida tão exagerados ou tão pura e simplesmente inventados que deixavam boquiabertos os seus convivas. Ou seja, era um garganeiro. As descrições das campanhas que fizera na Rússia era tão prodigamente tingidas com matizados de mentiras que ninguém o levava a sério, apesar de muitos ficarem fascinados com as narrativas do barão.
Nos trinta anos que mediaram daí até à sua morte, a fama de Hieronymus não parou de crescer. Transformou-se num famoso e muito procurado parlapatão que impingia versões muito particulares daquelas que tinham sido as suas desventuras. Curiosamente, não havia quem fosse capaz de chamar a Münchhausen mentiroso com todos os dentes. Limitavam-se a escutá-lo e a rir-se sem lhe darem grande crédito, mas também sem a mais pequena vontade de contrariá-lo. Era um figurão. E toda a gente, no fundo, gostava da sua verborreia.
Entretanto, para lá das aldrabices, Hieronymus teve chatices, e das grandes. Depois de ficar viúvo da primeira mulher, Jacovine van Duten, embeiçou-se por uma jovem 57 anos mais nova do que ele, Bernarditte von Brunn, que se declarou doente dois meses após a boda, recolhendo-se por autodeterminação a uma temporada às termas de Bad Prymont onde, segundo testemunhas tidas como isentas, declararam mais tarde que levava um vida dissoluta, de jogo, dança e namoricos com os moços da sua laia.
Quando reapareceu junto do marido, anunciando a sua gravidez, nem Münchhausen, tão pouco dado à verdade, acreditou que o filho pudesse ser seu. Gastou o que lhe sobrou da existência (e não foi muito) a tentar provar a infidelidade de Bernarditte e a fazer os impossíveis para não lhe pagar nem um tostão em pensões de alimentos. Morreu no dia 22 de Fevereiro de 1797 sem saber que se viria a tornar eterno.
Entrada na literatura
O responsável pela eternidade do barão de Münchhausen chamou-se Rudolf Erich Raspe, um livreiro alemão que se dedicou, igualmente, ao domínio da ciência e da literatura. Eric nasceu em Hanôver e estudou Direito tanto em Göttingen como em Leipzig. Tinha uma fixação tão grande por livros que, ainda jovem, em Göttingen, o fizeram responsável pela biblioteca da universidade. O seu nome passou a ser conhecidos nas várias camadas sociais. Tinha fama de rapaz bom e trabalhador. Não tardou a ser um professor de indiscutíveis capacidades nas áreas de História e de Antiguidades. Traduziu a obra do poeta Ossian para alemão e construiu um tratado sobre o livro de Thomas Percy, Reliques of Ancient English Poetry.
A curiosidade de Rudolf era absolutamente insaciável. Em 1767 instalou-se em Kassel como professor universitário. Depois de ter apresentado uma obra minuciosa sobre questões de zoologia, foi convidado para membro da Sociedade Geográfica de Londres. Instalou-se em Inglaterra e desatou a traduzir para alemão grandes clássicos da literatura e filosofia britânicas. Apesar de todo o trabalho a que se dedicava, tinha uma total incapacidade para juntar dois pence que fossem.
Pedia dinheiro emprestado a toda a gente, ganhou má fama, foi expulso da Sociedade de Geografia. Encolheu os ombros e caminhou para norte, para a Escócia, onde se colocou debaixo da asa protetora de um admirador rico, Sir John Sinclair, que lhe abriu as portas da mineralogia.
Como sempre acontecia, Rudolf tornou-se um especialista na matéria. Dois anos mais tarde aceitou um convite para explorar minas de cobre em Killarney, na Irlanda. Seria aí que viria a morrer.
Mas não matemos já o pobre Rudolf que ainda tem de nos ser útil para o que falta do artigo. Deixemo-lo entretido com a febre tifoide que o assolou por mais uns parágrafos e falemos do seu livro de contos mais famoso, universalmente conhecido por The Surprising Adventures of Baron Munchausen, às vezes também intitulado como Baron Munchausen’s Narrative of his Marvellous Travels and Campaigns in Russia.
A primeira edição do trabalho de Raspe surgiu em Londres durante o ano de 1785 e, ao que parece, não há no mundo um único exemplar da edição original. Na visão da crítica britânica, o livro foi considerado como extremamente satírico e como um golpe para ridicularizar muitos dos enfatuados declamadores parlamentares da época. Algo que lhe deu uma conotação política que, ainda nos dias de hoje, é severamente posta em causa.
Rudolf teve a oportunidade de se defender dessa acusação de forma bastante dura, por sinal: «Acho que quem escreveu sobre este meu livro nunca o leu. Limitou-se a pegar no que já tinha surgido escrito em outros jornais e a repetir as opiniões anteriores. Algo que considero extraordinário quando falamos de uma pequena edição de apenas cerca de cinquenta páginas».
Não lhe serviu de muito. Os ingleses tinham-no tomado de ponta. De pouco lhe servia tergiversar.
Uma obra universal
A segunda edição do livro das aventuras do barão, editada em Oxford, surgiu com um título bem mais extenso e explicativo: Baron Munchausen’s Narrative of his Marvellous Travels and Campaigns in Russia; humbly dedicated and recommended to country gentlemen, and if they please to be repeated as their own after a hunt, at horse races, in watering places, and other such polite assemblies; round the bottle and fireside.
Decididamente, Rudolf decidira passar a mão pelo lombo dos seus leitores ingleses de narizes empinados. O problema é que os afagos não fizeram efeito. O livro teve fraquíssima procura e as várias edições que se seguiram, entregues a editores diversos, mantiveram o mesmo nível de desinteresse geral. E, com o passar da década seguinte, o próprio Rudolf Erich Raspe deixou de ser, por muita gente, reconhecido como autor dos contos, sendo estes atribuídos a uma enorme variedade de autores, até mesmo a um tal de Mr. M., que alguns quiseram fazer crer que seria o autêntico Müncchausen.
O tempo faria justiça a Rudolf e, mais ainda, ao barão aldrabão que gostava de impingir histórias sem pés nem cabeça aos seus convidados para jantar. Hoje, as aventuras do barão já surgiram numa série de publicações diversas, em livros ilustrados e até no famoso filme de Terry Gillian, o desenhador dos Monty Python. Como cúmulo da ironia em que o livro é farto, o tema de vida de Müncchausen ergue-se como um facho a arder na noite escura: «In lies, truth». Isto é, nas mentiras, a verdade. O leitor que decida no que quer, ou não, acreditar.
Nada falta nas célebres aventuras do barão. Nem o pai do próprio que surge numa cena espetacular, capturando um cavalo-marinho e montando-o numa viagem ao fundo do mar. Já o filho preferiu descrever-se como tendo sido engolido por um monstro marinho e vomitado na praia como o Jonas das escrituras. Em seguida, apanhado por uma terrível tempestade ao leme do seu navio, foi arrastado por ventos e trovões até à superfície da Lua.
A ninguém sobrará dúvidas de que Hieronymus terá não apenas arrancado gargalhadas abundantes aos seus interessados ouvintes, como se terá rido muito por dentro da credulidade de alguns deles. Como seria de esperar, o barão assume-se como um cavaleiro notável, capaz de domar qualquer equídeo mais rebelde.
Ao percorrer a Lituânia, vê-se frente a frente com uma montada irascível da qual todos têm um medo-pânico. Todos, calma. O barão de Müncchausen desconhece por inteiro o significado da palavra medo. É de tal forma hábil a dominar o bicho que fá-lo saltar para cima de uma mesa posta para jantar e percorre-a a passo lento sem quebrar uma única peça de loiça. No momento seguinte, ao cavalgar a galope para dentro de um charco de areias movediças, vê-se obrigado a salvar o cavalo puxando-o pela cauda.
A imaginação de Hieronymus é inesgotável. Mas quanta dela não proveio da imaginação de Rudolf? Ninguém consegue, agora, discernir se as aventuras do barão são uma recolha de contos transmitidos boca a boca se, pelo contrário, são fruto de uma escrita alucinada.
A primeira viagem de Münchhausen à Lua deve-se ao facto deveras improvável de tomar conhecimento de que o seu pequeno machete de prata estava lá enterrado. Quem leu o livro sabe que não são dadas grandes explicações para a resolução de pequenos problemas. Eles surgem, página a página, a torto e a direito, e o barão que se desenrasque. Algo que faz sempre. E com toque de categoria. Neste caso concreto, Müncchausen não teve a mínima noção da própria força.
E, deste modo, ao atirar o machete para o mais longe possível, viu-o sair-lhe das mãos com tanta rapidez que só parou quando ficou cravado na superfície lunar. Outro qualquer olharia para a Lua, encolheria os ombros, e deixaria por lá o maldito objeto. Ah! Não o barão! Era o que faltava. Saltou para um pé de feijão gigante e pôs-se na Lua num abrir e fechar de olhos. Depois, para voltar, simplificou o processo. Limitou-se a atirar uma corda em direção da Terra e desceu calmamente por ela.
O barão personifica um daqueles casos raríssimos em que tudo é absolutamente possível. Por isso voa nas costas de uma águia gigante, carregado de frutas enormes cheias de uma espécie de vinho branco e só volta quando o pássaro que o transporta recupera da bebedeira. Ou, por distração, tropeça no último canto da Terra e cai para só aparecer do ouro lado. Ou viaja montado numa bala de canhão através das fronteiras de todos os países. É neste reino do absurdo que sobreviveu nos últimos 200 anos para continuar ainda vivo na memória de muitos de nós ou nas páginas dos livros de Rudolf que continuam a ser publicadas e, sobretudo, muito mais vendidas do que no tempo em que viveu.
De Hieronymus Karl Friedrich nunca se soube muita coisa. Apenas que falava demais. E que, pelos vistos, era um aldrabão de vinte e quatro patas que caminhava com um cavalo debaixo de cada braço.