"Não pôr em segundo plano os primeiros socorros psicológicos"
Reflective listening, Assessment of needs, Prioritization, Intervention, and Disposition (em português, escuta reflexiva, avaliação de necessidades, priorização, intervenção e disposição) são os termos-chave do modelo RAPID, habitualmente seguido por profissionais de saúde mental, equipas como os Médicos Sem Fronteiras ou a Organização Mundial da Saúde.
“Há um ano lancei uma iniciativa para ajudar profissionais de saúde. Depois, percebemos que teria de ser estendida ao resto dos cidadãos devido a situações de gestão de luto e outras. Quando começámos a compreender aquilo que estava a acontecer na Ucrânia, decidimos voltar a fazer o mesmo”, começa por explicar ao i a psicóloga Ana Carina Valente, líder do grupo “Capacetes Laranjas”. Juntamente com os colegas, a doutoranda em Psicologia da Saúde acompanha, via telefone e videochamada, de forma totalmente gratuita, a comunidade ucraniana em Portugal e pretende fazer o mesmo com os refugiados que estão a ser acolhidos.
“Um caso é o de uma jovem ucraniana que não comeu nem dormiu durante vários dias. Está cá a dar o melhor, mas sente-se muito triste”, explica a mentora da iniciativa “COVID 19 – Primeiros socorros psicológicos a profissionais de saúde, gestão de luto e isolamento e solidão” que, juntamente com os colegas, avalia se é necessário encaminhar os doentes para serviços externos, como apoio médico especializado.
“Os primeiros socorros psicológicos ainda são muito menosprezados. Diminuem a probabilidade de se desenvolverem problemas mentais, deviam ser valorizados”, indica a professora assistente do ISPA. “De forma muito simples, este apoio está direcionado para eventos traumáticos e aceitar os sentimentos de quem nos procura é fundamental. Tentamos que consigam definir estratégias para viver x ou y situação. E isto facilita a comunicação com as pessoas que estão a passar pelo mesmo, pois queremos que sintam esperança no futuro e não que estão impotentes”, conclui.
Não temer pedir ajuda, pois é um “sinal de coragem”
Nathália diz que passa dias sem comer, dorme mal e, entre outras coisas, consulta as redes sociais até quando o filho bebé acorda para mamar. Por seu lado, Soraia confessa que instalou o Twitter e, quando acorda, abre esta plataforma “para saber se o presidente Zelensky está vivo”.
“Há quem deixe de fazer exercício, desconte na comida, não durma em épocas como esta… Temos de pensar sempre no autocuidado. Se a pessoa deixar de lado aquilo de que gosta, aí poderá entrar num estado depressivo. E não podemos esquecer o stress pós-traumático que se pode desenvolver em quem está no terreno”, indica a psicóloga clínica Petra Tavares.
“As pessoas têm de pedir ajuda: não é um sinal de fraqueza, mas sim de coragem. Se estivermos com dores nos dentes, vamos ao dentista. Portanto, ir ao psicólogo e/ou ao psiquiatra tem de ser normalizado”, avança a profissional mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
“Estou profundamente afetada. Tanto que comecei a ter ataques de ansiedade, insónia, a passar dias sem comer, ansiosa, o meu bebé acorda de madrugada para mamar e vou às redes sociais ver se aconteceu alguma desgraça diferente durante a noite”, desabafa Nathália Macagnan. Soraia Alves esclarece: “Quanto a estar afetada, pode dizer-se que sim. A CNN está ligada 24/7 nesta casa e instalei o Twitter para seguir aquilo que os envolvidos dizem. A primeira coisa que faço quando acordo é pegar no telemóvel para saber se o Presidente Zelensky está vivo”.
“Nós estamos preparados para lidar com estas informações e todos estes sentimentos. Por exemplo, estou a aplicar a minha formação em intervenção e crise agora”, remata Petra Tavares.
Pensar em formas viáveis de ajudar quem mais precisa
“É normal que estejamos assoberbados, mas temos de pensar se podemos ajudar, fazer voluntariado, enviar alimentos e roupa, etc.”, sugere a psicóloga Petra Tavares. E foi isto mesmo que Nuno André fez, criando, juntamente com mais voluntários, o movimento “Todos Pela Ucrânia”.
lll “Todos Pela Ucrânia” é o nome do projeto que Nuno André, professor e investigador na área da História e da Teologia, criou com o auxílio de familiares, amigos e conhecidos. Agora, encontra-se na Polónia, depois de ter passado pela Ucrânia entre quinta-feira da semana passada e a quarta-feira desta. No Instagram @todos_por_u lia-se, no passado dia 1 de março, que o movimento se comprometia a realizar “a deslocação à Ucrânia, entregar bens prioritários, fazer a coordenação logística na fronteira e apoiar refugiados”, assim como garantir o “regresso a Portugal”, o “transporte de famílias de refugiados” com o auxílio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, “a estadia em quinta (Santarém)” e a “entrega de bens essenciais”.
A plataforma de angariação de fundos PPL informa que Nuno e os restantes voluntários que a ele se juntaram estipularam as seguintes despesas: deslocação (portagens e combustível): 1150 euros, logística (gás, pilhas, gerador, lonas, etc.): 450 euros, reforço de alimentos e medicamentos: 500 euros, manutenção de transporte: 350 euros. Do montante total de 2450 euros, até agora, atingiram os 1325.
“É normal que estejamos assoberbados, mas temos de pensar se podemos ajudar, fazer voluntariado, enviar alimentos e roupa, etc. Dosear as notícias, termos uma boa rede de contactos e apoiarmo-nos neles também são ações fundamentais, pois não podemos isolar-nos”, aconselha Petra Tavares, apontando que “todos sentimos medo” e, por isso, há que “respeitar o nosso timing, exigirmos menos de nós se for preciso e falar”.
As três palavras-chave: “perceber, validar e acolher”
Quase quatro mil quilómetros depois, com 50 voluntários, 23 carros repletos de medicamentos, produtos de higiene, roupas e alimentos doados, a caravana de Pedro Fonseca chegou à Polónia e à Roménia.
Segundo George S. Everly, Jr, docente na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e criador do modelo RAPID, este caracteriza-se por ser facilmente aplicável em ambientes de saúde pública, locais de trabalho, militares, organizações religiosas, locais de desastres em massa e até mesmo em eventos críticos mais comuns.
A título de exemplo, lidar com as consequências psicológicas de acidentes, roubos, suicídio, homicídio ou violência comunitária. Além disso, o modelo mostra-se eficaz na promoção da resiliência pessoal e comunitária. “Chegou-nos um caso de uma senhora que tem o marido na Ucrânia e outra que pediu ao filho e ao marido para voltarem, mas eles disseram que não e que já estão a fabricar armas. Ninguém consegue ficar indiferente a isto: sofremos, mas eles veem a comunidade, as ruas, as pessoas deles mal. Temos de perceber, validar e acolher”, afirma Ana Carina Valente. E foi isto que Pedro Fonseca fez.
Tudo começou num grupo de WhatsApp em que se refletia acerca de possíveis ajudas que amigos e conhecidos prestariam aos refugiados ucranianos. No dia 2 de março, com o apoio de 50 voluntários, o formador e vendedor do Grupo Latina fez-se à estrada. Por aqui, os “Consultores Imobiliários pela Ucrânia” uniram-se para “procurar alojamento temporário gratuito, arrendamentos de baixo custo, necessário para receber a comunidade Ucraniana que está a chegar a Portugal”.
“Esta iniciativa é anti-ego. Surgiu devido ao ‘aperto no coração’. Esperemos que inspire outro tipo de iniciativas mais musculadas. Eu não quero protagonismo, quero ajudar”, disse Pedro ao i antes da viagem.
Evitar a leitura constante de notícias
O fluxo de informação é permanente e este é o primeiro conflito que vivemos “ao minuto” por meio das redes sociais. No entanto, temos de ter cuidado com a exposição às notícias. Por exemplo, Paula foi questionada pela filha acerca da participação das mulheres em cenários de guerra.
“Estamos todo o dia a ser bombardeados com estas situações, é um bocadinho aquilo que acontecia no início da pandemia. A incerteza causa muita ansiedade. Há repercussões a nível económico, o medo de que a guerra se alastre… Hoje recebemos um email a pedir ajuda para a comunidade de refugiados que está aqui. Estamos todos a ser afetados pela exposição às notícias”, sublinha Petra Tavares, frisando que o conflito Rússia-Ucrânia “atingiu o mundo”.
“Estamos a assistir a uma guerra ao minuto: parece muito irreal e estamos ‘aqui ao lado’. A informação constante gera ansiedade. Os jornalistas fazem o seu trabalho e as pessoas têm de ser regradas e ter um filtro. Ontem disse à minha paciente ucraniana, que está longe da família e dos amigos, para pôr o telemóvel em modo voo. Não vale a pena estarmos constantemente expostos àquele estímulo”, avança a psicóloga pós-graduada em Psicopatologia da Criança e do Adolescente, especializada em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações e igualmente com formação em primeiros socorros psicológicos.
“É óbvio que o problema existe, mas temos de ter a consciência de que devemos ver atualizações da situação, mas não mais do que isso. Não nos podemos expor tanto a estes gatilhos”, observa. “Não devemos parar a nossa vida. Se todos ficarmos em casa a ver as notícias o dia todo, vamos ficar doentes”, ilustrando casos como o de Paula Guerra, mãe de uma menina de 9 anos, que, ao i, explica que a filha lhe perguntou “se era verdade que as mulheres também podiam ir para a guerra”. “Mãe, não podes ir. Se tu fores como é que vou lidar com isto?”, terá questionado a criança.