Desde o princípio deste ano aceitei dar a minha colaboração profissional à Casa do Artista para apoiar a colega que lá presta funções, visto o serviço exigir a presença médica diária. Num grupo etário onde as morbilidades aumentam e as defesas diminuem, o médico tem um papel essencial.
Estou a fazer um trabalho de que gosto e do qual tenho alguma experiência, num meio em que me sinto confortável. De facto, ao longo da minha vida clínica sempre acompanhei muitos artistas.
Esta casa não é um lar, com toda a carga psicológica que a sociedade passou a colocar nestas instituições. É muito mais do que isso. É um verdadeiro «polo cultural», utilizando as palavras do seu presidente, o conhecido ator José Raposo, numa entrevista recente. Cada pessoa tem uma história ligada ao teatro, à televisão, à rádio, à música, às artes circenses, ao bailado, que recorda pedaços da vida e da cultura do país; porém, tal como acontece com os utentes dos ‘lares comuns’, estas pessoas também precisam de alguém que as oiça e lhes dê um pouco de carinho e atenção.
A casa em si é magnífica e os espaços envolventes foram excelentemente aproveitados. Nos corredores da entrada respira-se teatro, e as fotografias das velhas glórias do passado expostas nas paredes são bem a prova disso. A experiente Conceição Carvalho, elemento da direção sempre presente, a incansável Paula Trindade, diretora técnica, e ainda Celeste Passarinho, coordenadora de serviços, fazem as honras da casa. No departamento médico, a Ana, a Liliana e a Beatriz dão-nos as boas-vindas. Tudo pensado ao pormenor, onde não podia faltar a unidade de fisioterapia, nem o piano, numa das salas de convívio – onde, de quando em quando, pela mão dos entendidos, se ouvem velhas melodias de sempre.
E ali ao lado, dentro do mesmo espaço, está o Teatro Armando Cortez, homenagem a outro nome grande do teatro português, que foi ponto de honra ao pensar-se no projeto no seu conjunto.
A cedência do terreno ficou a dever-se ao então presidente da Câmara Nuno Abecasis, e a obra demorou cerca de 20 anos a concluir. Nasceu assim a Casa do Artista, cuja ideia o grande Raul Solnado trouxe do Brasil.
Manuela Maria, atriz da velha guarda e de primeiríssima categoria, é uma das residentes. Sócia fundadora, conhece a casa como ninguém. Ao entrar nos seus aposentos, parece que estou num museu, tantas são as recordações. E, ao despedir-me, não me deixa arrumar a cadeira onde estive sentado: «Nunca se arrumam as cadeiras das visitas para elas voltarem» – sentencia. Desconhecia a ‘regra’, mas tornei-me um fiel cumpridor.
Antes do início da consulta, Manuela Maria tem sempre uma história nova para contar.
Uma vez, já lá vão uns anos, depois de representar à noite num teatro do Porto, quando regressava a Lisboa, a atriz perdeu-se em Gaia e não sabia como encontrar a direção para a capital. Apesar do adiantado da hora, encontra um casal que fazia a sua caminhada e pede-lhe auxílio. A senhora, solícita, oferece-se para entrarem para o carro e lhe indicarem o caminho. Mas o marido, apesar de entrar, não se sente seguro. Receando estarem a cair numa armadilha, repreende a mulher. E esta responde-lhe, num tom que apesar de abafado é perfeitamente audível pela atriz: «Ó homem, não vês que é a senhora do teatro?».
Reencontrada a direção para Lisboa, o casal sai do automóvel, despede-se, e, quando Manuela Maria se desfazia em agradecimentos, a senhora responde-lhe: «Se faço o que devo, já devo o que faço»; como quem diz: não faço mais do que a minha obrigação.
Nunca mais se viram. Mas recentemente Manuela Maria recebeu na Casa do Artista uma carta de um destino desconhecido. Quando a abriu, viu que era nem mais nem menos do casal que a tinha ajudado naquela noite há uns 12 anos! Ao saberem pelas notícias que a atriz residia ali, queriam saber como estava e cumprimentá-la. Sensibilizada, Manuela Maria telefonou-lhes – e serviu-se da mesma expressão que a senhora tinha usado na altura para lhe responder ao agradecimento: «Se faço o que devo, já devo o que faço»…
As voltas que o mundo dá!
Nunca mais esqueci esta história. Mas, tal como as outras de que ali tenho tido conhecimento, é preciso tempo para as saber ouvir.
Por aqui se vê que, nesta faixa etária, mais importante do que as receitas, os medicamentos e os exames complementares, hoje em dia requisitados por tudo e por nada, é fundamental dar um pouco mais de atenção às pessoas, para no fim lhes podermos explicar o que está em causa.
Ao contrário de uma vulgar consulta num gabinete médico qualquer, o procedimento nesta área terá de ser totalmente diferente e exige uma disponibilidade total para desempenhar estas funções.
É aqui, na Casa do Artista, que estão muitas vidas humanas, cada pessoa com a sua história, com o seu passado cultural carregado de recordações que nos falam ao coração. E eu, mais do que médico, sinto-me um privilegiado por poder reviver com eles as emoções desse passado glorioso.