por Nuno Cerejeira Namora
Sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão & Associados e Advogado Especialista em Direito do Trabalho
A Europa contemporânea (pós-guerras) criou-se e desenvolveu-se sob a promessa da Paz. Duas guerras mundiais que quase destruíram o ‘velho continente’ tiveram, durante bem mais de meio século, um efeito preventivo de novos conflitos com dimensões assinaláveis: não havia ninguém que quisesse novamente despedir-se dos filhos ou dos maridos, entregando-os a guerras sangrentas e devastadoras. Mas eis que aqui estamos: a promessa desmoronou e as consequências da guerra na Ucrânia para a ‘nova Europa’ são ainda imprevisíveis. Apenas podemos, para já, afirmar, como têm feito sucessivas análises, a derrota da ideia de Fukuyama de que a história havia, no alvor deste século, chegado ao fim: na verdade, parece estar apenas a começar.
Entre outras coisas, a invasão russa da Ucrânia está a criar uma crise humanitária de grande escala. Segundo dados atualizados das Nações Unidas, contabilizam-se, para já, cerca de um milhão de ucranianos que, nestes últimos dias, escaparam do conflito, prevendo-se que este número se multiplique dezenas de vezes, se o assassino Putin mantiver as suas ambições imperiais.
Em resposta, a União Europeia já estabeleceu uma política de porta aberta, que pode durar três anos, tendo Portugal, de igual forma, demonstrado a sua solidariedade, anunciando que receberá os cidadãos ucranianos e agilizará a concessão de vistos para aqueles que queiram vir para o nosso país. Os Estados-membros da União Europeia já expressaram o seu apoio à ativação da diretiva que permite conceder proteção temporária no bloco europeu aos refugiados ucranianos que fogem da invasão da Rússia comunista.
A atitude dos governos europeus e da UE é de enaltecer e orgulha-nos. Mas porque é que este franquear de portas por parte da UE foi distinto em face da história recente e da calamidade que grassa no mediterrâneo, onde refugiados de outros conflitos e guerras dramaticamente procuram alcançar as margens da Europa?
Afinal, além da cor da pele e da religião, o que separa os fugitivos do Norte de África dos ucranianos? Desde logo, a culpa: a União Europeia sente-se culpada por não poder intervir diretamente no conflito, assim procurando compensar essa incapacidade militar com uma generosa política de porta aberta para o povo ucraniano.
Depois, e apesar de não constar do discurso oficial (jamais poderia!), há uma perceção genérica dos ucranianos como o ‘tipo certo’ de refugiado, aliás alimentada pela experiência migratória das últimas décadas em muitos países, incluindo Portugal. A realidade migratória em Portugal mostra-nos que, desde a década de 90 – altura do boom no setor da construção civil e obras públicas – aqui se instalaram grandes comunidades luso-ucranianas, sendo os migrantes ucranianos, desde essa altura, um grupo com alguma importância para o nosso país. Repare-se que em 2008, eram mais de 52 mil os ucranianos a residir legalmente em Portugal, número que em 2020 se terá situado nos 28 mil, mas que não conta nem com os residentes ilegais nem com aqueles que, entretanto, adquiram a nacionalidade portuguesa ou aqui constituíram família.
Ora, perante aquilo que vem sendo descrito como uma crise da mão-de-obra em vários setores da nossa economia, a entrada em massa destes refugiados está a ser visto por muitos como uma hipotética solução, tanto mais que alguns dos setores mais carecidos de trabalhadores (por exemplo, a construção) são exatamente aqueles que têm uma maior tradição de receberem e integrarem imigrantes daquelas paragens.
Os motivos subjacentes à inserção dos trabalhadores ucranianos no mercado de trabalho português estão bem identificados: estudos demonstram que os imigrantes ucranianos são altamente escolarizados, independentemente do género, pois provêm de um país onde o ensino técnico/profissional ocupa um lugar de destaque na formação da população. Ademais, os imigrantes ucranianos, tal como os imigrantes de uma forma geral, demonstram uma grande disponibilidade para aceitarem condições de trabalho mais duras, estando dispostos a trabalhar por turnos e em horários mais exigentes, exercendo as tarefas que os portugueses já não querem. Por outro lado, atendendo à falta de laços familiares no nosso país, os imigrantes têm uma maior mobilidade laboral e geográfica, o que lhes permite deslocações para, por exemplo, o interior do nosso território.
No que diz respeito à integração socioprofissional, enquanto no passado os setores das limpezas e da construção civil eram aqueles que mais ucranianos incorporavam, hoje, os serviços estéticos, de hotelaria e restauração e do setor secundário são aqueles que mais valorizam estes trabalhadores, uma vez que não só os mesmos detêm grandes capacidades linguísticas, como têm uma cultura muito próxima da nossa, o que dirime os choques culturais que, com outro tipo de população, se poderia gerar.
A somar, é de notar que os portugueses, nas relações pessoais, segundo relatam alguns estudos, reconhecem aos cidadãos ucranianos uma grande educação, empenho, competência, humildade, e categorizando-os, como bons trabalhadores. Aliás, o facto de haver já anúncios de trabalho cujo público-alvo são pessoas provenientes do leste da Europa, como é o caso da indústria nacional de bicicletas, é bem demonstrativo do interesse nesta mão-de-obra.
Os ucranianos são, pois, um povo trabalhador, lutador, educado e com escolaridade. Há, assim, razões económicas, políticas, culturais e humanitárias para os receber.
Ucranianos: a Europa pede vos desculpa por não ter conseguido prever e evitar esta invasão da vossa Pátria e dá-vos as boas-vindas.