O Bloco é um partido de mártires

O Bloco é realmente um partido diferente. Como os mártires cristãos supliciados por Nero no Coliseu, os seus líderes abraçam com fé o sacrifício para exaltarem os princípios que defendem.

No livro A Cortina de Ferro, a historiadora Anne Applebaum demonstra que nos regimes comunistas os dirigentes viviam como autênticos capitalistas. E quanto mais um camarada subia na hierarquia do partido, mais burguês se tornava. Mas Applebaum é uma ilustre desconhecida que apenas ganhou um prémio Pulitzer e pouco mais. A realidade é muito mais complexa e escapa a historiadores de vistas curtas. 
Veja-se o caso português.

Mariana Mortágua foi apanhada a violar o regime de exclusividade que proíbe os deputados de receberem pagamentos pelos seus comentários na televisão – recebendo por isso um acréscimo de 10% no salário. À primeira vista, isto parece revelar falta de princípios éticos, ou de vergonha, um ato hipócrita e desonesto. Porém, numa análise mais profunda verifica-se o contrário. Não foi a ganância que moveu a deputada, mas sim querer demonstrar, com risco da sua reputação, a importância desta lei. Assim, Mariana fez ela própria de Abraão e Isac, subiu a montanha da exclusividade para se imolar e só parou quando escutou a voz de Deus dos jornais que a denunciaram. Estava toda contente a imolar-se com o vencimento da SIC, quando Deus lhe disse: 
– Basta Mariana! 

Assim, depois de ter escapado por um triz, declarou que «abdica dos pagamentos e solicitou à Assembleia da República que sejam realizados os acertos remuneratórios». Os portugueses desconfiavam que as leis da Assembleia da República não serviam para nada ou até beneficiavam os próprios deputados. Mas, graças a Mariana Mortágua, ficaram a saber que certas leis – as que o Bloco mais defende – são realmente importantes.

Recuando no tempo, em 2009 os jornais também noticiaram que Francisco Louçã tinha subscrito um PPR – um produto financeiro composto por ações de empresas que estão sujeitas às leis do mercado. Ou seja, aderira ao capitalismo de casino. Uma vez mais se falou em hipocrisia, faz o que eu digo não faças o que eu faço, mas os críticos não perceberam a verdadeira jogada. Ora se o fundador do Partido Socialista Revolucionário entrava na Bolsa de Lisboa, isso só podia significar que esta se tornara um local perigoso. E quanto à reputação financeira dos PPR, essa foi à vida. A partir de então, quem é que arriscaria investir num PPR sabendo que poderia ter como parceiro o temível Louçã? Portanto, o suposto investimento do líder do Bloco em 2009 foi um golpe calculado de desacreditação da Bolsa de Lisboa. Sabotagem trotskista. E, como é sabido, desde então a Bolsa não parou de dar trambolhões e já afugentou milhares de investidores. Só uma mente superior poderia conceber um plano tão maquiavélico contra o capitalismo de casino. 

Inspirado neste golpe, em 2018 o vereador bloquista da Câmara Municipal de Lisboa – que se destacara pela campanha contra a especulação imobiliária – aparece a tentar vender por 5,7 milhões de euros um imóvel comprado à Segurança Social por 347 mil Euros. Isto, sim, parecia um negócio da China, um ato de especulação imobiliária capaz de fazer corar qualquer pato bravo. Mas, uma vez mais, os críticos não perceberam o alcance da manobra. Não foi Robles, nem o Bloco que ficaram mal nesta fotografia. Pelo contrário, o que o vereador bloquista pretendeu fazer foi demonstrar a promiscuidade entre a política e os negócios, e a possibilidade de enriquecimento fácil a quem está dentro do sistema. Pois se ele não avançasse com a manobra, como poderiam os portugueses imaginar que se poderia multiplicar por 16 um investimento inicial? Nem com a Dona Branca isso acontecia. Com sacrifico próprio, Robles mostrou que tais negociatas são realmente possíveis em Portugal. E, graças à sua coragem, nunca mais nenhum ato tão escandaloso de especulação imobiliária foi perpetrado no nosso país. 

Contudo, o caso mais pungente de sacrifício em prol dos seus ideais é o de Catarina Martins ao decidir fechar sedes do Bloco e despedir funcionários porque se acabou o dinheiro. Ou seja, austeridade. Ora para quem passou a carreira política a combater a austeridade, a associá-la a políticas de Direita neoliberais e fascistas, a um ato de hedionda violência contra o ser humano, ter ela própria de se tornar na sacerdotisa dos cortes e dos despedimentos constitui um suicídio político. Como poderá, pois, a Coordenadora coordenar protestos contra outras austeridades? Já não pode. E, provavelmente, nunca mais poderá coordenar seja lá o que for. As coordenadas do seu trajeto político apontam para um ponto negro chamado fim de carreira. E aqui está a sua grandeza moral. Porque ao aplicar a austeridade ao seu partido, mandando para o desemprego centenas de pessoas que em si confiaram, ainda que se descoordene de vez, demonstra com o seu sacrifício que a austeridade neoliberal fascista é um horror que todos devemos combater. 

O Bloco é realmente um partido diferente. Como os mártires cristãos supliciados por Nero no Coliseu, os seus líderes abraçam com fé o sacrifício para exaltarem os princípios que defendem. Depois, cravejados de flechas e despedaçados por leões, nasce-lhes uma auréola na cabeça e ascendem à santidade. E, por fim, os seus amigos nos jornais acendem-lhes uma velinha.