A sua cara parece contar uma viagem. As marcas no rosto levam-nos a adivinhar que estamos perante alguém que já foi muito castigado e os seus olhos parecem já ter visto muita coisa. O nome de Piotr Pavlenski, atualmente com 38 anos e exilado em França desde 2017, pode soar desconhecido. Contudo, depois de conhecermos o seu percurso artístico, é difícil esquecê-lo. Há quem o considere um artista russo contemporâneo, outros, um ativista responsável por ações controversas e desconcertantes. A verdade é que há muito que Pavlenski, nascido em São Petersburgo em 1984, transformou o seu corpo numa “arena de combate”. E isto não é uma metáfora. Ao longo dos anos o artista russo costurou a boca, pregou o escroto no chão na Praça Vermelha, cortou o lóbulo da orelha como Van Gogh diante de um centro psiquiátrico, incendiou as portas da antiga sede do KGB e foi o responsável pela destruição da candidatura de Benjamin Griveaux, do partido La République en Marche (LRM), em 2020.
Agora, e 10 anos depois da sua primeira “intervenção”, Pavlenski acaba de publicar Collision, em português Colisão, um livro do qual é o centro, embora não haja uma única palavra sua. A obra é composta exclusivamente pelo trabalho meticuloso de polícias, juízes, investigadores, secretários, psiquiatras e psicólogos, que interrogaram e investigaram os seus comportamentos até 2019. Segundo a sinopse da obra, fiel ao seu método que “obriga os aparelhos do poder a trabalhar para a arte”, o artista proporciona aos leitores “um mergulho alucinante na máquina prisional, russa e francesa, recaindo sobre um artista engajado na política da arte”. “Sou eu quem organiza as vozes, como se o livro fosse um grande quadro”, afirmou Pavlenski a propósito do seu lançamento.
O que defende Piotr?
“Ser artista nunca foi fácil. E se tu não quiseres estar ao serviço do poder, sofrerás as consequências: censura, prisão e outras formas de opressão. Não sou o único que saiu da Rússia. Aqueles que ficam, ou estão constantemente dentro e fora da prisão ou se adaptaram ao regime”, defendeu Pavlenski por diversas vezes. Estudou belas artes na Academia Stieglitz de Arte e Indústria em São Petersburgo e arte contemporânea na Fundação Pro Arte para Artes e Cultura. De acordo com a revista francesa L’Obs, nas suas performances o artista expõe explicitamente a “mecânica do poder” e obriga as autoridades a “fazer arte” participando nos seus “eventos políticos artísticos”. Inspirado no grupo feminista russo Pussy Riot, e seguidor da tradição de artistas como o americano Chris Burden, os Actionists Vienenses – um movimento curto e violento na arte do século XX –, o artista ucraniano Oleg Kulik, o artista e ativista russo Alexander Brener, e ainda Joseph Beuys, os seus trabalhos geralmente envolvem nudez e automutilação. Segundo o Le Point, Pavlenski considera “a anarquia um modelo indubitavelmente ideal, mas cujo ideal se baseia na impossibilidade de realizá-lo”. Considera-o como “um trabalho sobre a noção de poder”.
As performances mais “bizarras”
A sua “batalha artística” começou em 2012, quando três mulheres – membros do grupo Pussy Riot – com máscaras coloridas, invadiram a Catedral de Cristo Salvador em Moscovo cantando para a Virgem com o objetivo desta libertar a Rússia de Vladimir Putin no meio da sua campanha de reeleição. Numa performance a que deu o nome de Costura, o artista costurou os lábios, em apoio ao grupo feminino condenado a dois anos de prisão pela sua “oração punk”. No dia 23 de julho desse ano, Piotr apareceu na Catedral de Kazan, em São Petersburgo, com os lábios cosidos e uma faixa com a seguinte inscrição: “A ação do Pussy Riot foi uma réplica da famosa ação de Jesus Cristo”. Segundo a publicação russa Art Chronika, que o entrevistou na altura, a polícia chamou uma ambulância e enviou-o para o hospital para que lhe fosse feito um exame psiquiátrico, mas o médico declarou que o artista estava mentalmente são. Interrogado sobre o motivo que o levou a realizar tal performance, Piotr respondeu que na sua opinião o que havia acontecido com o grupo feminista era “contrário aos valores cristãos”: “Isto não pode ser ignorado! Antes, ainda parecia que havia formas pacíficas de resolver o problema, que se podia ficar à margem, esperar que este jogo acabasse. Agora ficou claro para mim que eu, como artista, devo apelar e avisar o público”, afirmou. O artista acrescentou ainda que estava a colocar a nu “a falta de respeito pelos artistas na Rússia”. “Estou enojado com a intimidação da sociedade, a paranoia em massa, cujas manifestações vejo em todos os lugares. A minha intenção não era surpreender ninguém ou apresentar algo incomum. Em vez disso, pensei que tinha que criar um movimento que refletisse com precisão a minha situação”, sublinhou.
Foi aí que começou aquilo a que ele chama “eventos” políticos. O mais radical foi Fixação. Em 2013, o artista despiu-se em frente ao Kremlin e, com um martelo, pregou o seu escroto na calçada da Praça Vermelha. Passou mais de uma hora nessa mesma posição, no frio de novembro. O acontecimento coincidiu com o Dia Anual da Polícia Russa: “Um artista nu que olha para os seus testículos pregados na calçada é uma metáfora para a apatia, indiferença política e fatalismo da sociedade russa ”, explicou na época em comunicado aos media. Segundo o jornal espanhol El Mundo, Pavlensky só entende a arte assim, “um choque que ultrapassa os limites” (e, muitas vezes, as leis): “Onde há prudência não há lugar para a arte”, defende.
Em fevereiro de 2014, Pavlenski recorreu às chamas pela primeira vez. O artista organizou uma “ação” a que chamou Liberdade, em apoio ao Euromaidan – nome dado aos protestos pró-europeus na Ucrânia; juntamente com outras pessoas, construiu uma barricada numa ponte de São Petersburgo, queimando pneus e batendo em tambores (o que o levou a ser acusado de vandalismo). No mês seguinte, escalou nu um muro do Centro Psiquiátrico Serbski e cortou o lóbulo da orelha direita para protestar contra o que considerava ser um “uso político dos centros psiquiátricos russos”: “O uso indevido de diagnóstico psiquiátrico e a detenção e tratamento para interferir nos direitos fundamentais de determinados grupos e indivíduos da sociedade”, denunciou. Pavlenski chegou a ficar internado 21 dias nesse mesmo hospital. Contudo, em 2015, voltou “ao ataque”, utilizando novamente o fogo. A “ação” Ameaça, como lhe chamou, levou-o a incendiar o portão da Lubyanka, sede do Serviço Federal de Segurança (FSB), antiga KGB. Segundo o jornal espanhol, só necessitou de uma lata de gasolina e um isqueiro. Depois, teve alguns minutos para se apresentar diante da câmara com que gravava o acontecimento, antes de ser preso. Para Pavlenski , a “ameaça terrorista” era representada pelo FSB, “organização que semeia o terror e mantém 146 milhões de pessoas com medo”, escreveu na época.
O evento a favor da Ucrânia somado ao incêndio no FSB acabou por colocá-lo na mira das autoridades e, em 2017, ele e sua parceira da altura, Oksana, foram presos depois de uma atriz os ter acusado de ofensa sexual e ameaças de morte. O juiz libertou-os pouco tempo depois e a família rumou a França. Mas se muitos a consideram um país de “Liberdade, Fraternidade e Igualdade”, mais uma vez, Pavlenski não está satisfeito. E reforçou que “a arte não pode estar a serviço de nenhum poder”: desta vez o palco foi a Praça da Bastilha, onde incendiou as portas do Banco da França. À “ação”, deu o nome de Iluminação, um tributo a Caravaggio e uma crítica aos bancos como “símbolo da tirania moderna”. Com isso, acabou na prisão: o tribunal não viu o seu evento como arte, mas como crime. Mas também não parece ter sido o suficiente para “pará-lo”. Em 2020, o seu alvo passou a ser uma pessoa. No dia 14 de fevereiro, Benjamin Griveaux, de 42 anos, anunciava à AFP a sua saída da corrida à presidência da Câmara de Paris, depois de terem começado a circular na internet imagens íntimas suas. Segundo a agência, o vídeo, destinado a uma mulher – no qual se pode ver um homem cujo rosto nunca aparece, mas atribuído a Griveaux, a masturbar-se – foi colocado num site criado para esse fim. Piot Pavlenski, reivindicou estar na origem da divulgação do vídeo, justificando o seu ato com a necessidade de denunciar a “hipocrisia” de Griveaux. Segundo o russo, o deputado, casado com a advogada Julia Minkowski e pai de três filhos, “usou a família para se apresentar como um ícone para todos os pais e maridos de Paris e fez propaganda com os valores familiares tradicionais”. Para Pavlenski, este também foi um evento artístico, a que apelida de “Pornopolitique”.
De acordo com a lei francesa, o crime de “vingança pornográfica” pode ser punido com uma pena de dois anos de prisão e 60 mil euros de multa. Piotr Pavlenski e a sua companheira, Alexandra de Taddeo, foram presos por “invasão de privacidade” e “divulgação sem consentimento da pessoa de uma gravação contendo palavras ou imagens de natureza sexual” e colocados sob controlo judicial.