A Justiça no feminino

Há quem diga que o mundo do Direito é um dos mais conservadores. Mas as evidências, no que a este tópico dizem respeito, mostram-nos o contrário. Anos antes das mulheres adquirirem o direito ao voto, em Portugal, já tinham a possibilidade de serem ‘servidoras da justiça’, porquanto em 1918 foi promulgado o Decreto n.º 4676,…

por Nuno Cerejeira Namora
Sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão & Associados e Advogado Especialista em Direito do Trabalho

Confesso que as notícias inspiraram este artigo, aparentemente, nada tem a ver com o seu desenvolvimento. Dei-me inicialmente a refletir sobre a (in) justiça de a lei marcial (apenas) se aplicar os homens naturalizados ucranianos entre os 18 e os 60 anos, impedidos de sair da sua pátria natal e serem obrigados a combater o imperialismo russo e do apelo da ex-Miss Ucrânia, Anastasiia Lenna, ao ter posada fardada e armada, chamando á resistência contra o invasor comunista.

Num ano, onde, depois de uma guerra contra o inimigo invisível, a invasão da Rússia à Ucrânia deixou o continente europeu e o mundo sob ameaça do ditador vermelho, destaco, neste dia especial, o papel que as mulheres têm vindo a conquistar, não só na sociedade, particularmente a portuguesa, mas também no exercício de todas as profissões ligadas á Justiça.

É já cliché dizer que o Dia Internacional da Mulher, assinalado em grande parte do globo, se justifica, por um lado, pela vontade expressa de promover a igualdade entre mulheres e homens, e, por outro lado, pelo longo caminho que ainda falta fazer para alcançar essa almejada igualdade. De facto, se os progressos que têm sido feitos a este propósito não são de somenos, a verdade é que a visão dicotómica homem/mulher continua ainda muito presente para onde quer que olhemos. Sem prejuízo, uma das coisas das quais nos devemos orgulhar é, precisamente, o facto de as mulheres se terem vindo a afirmar em várias profissões e nos mais diversos e altos níveis.

Há quem diga que o mundo do Direito é um dos mais conservadores. Mas as evidências, no que a este tópico dizem respeito, mostram-nos o contrário. Anos antes das mulheres adquirirem o direito ao voto, em Portugal, já tinham a possibilidade de serem ‘servidoras da justiça’, porquanto em 1918 foi promulgado o Decreto n.º 4676, de 19 de julho que abriu as portas às mulheres daquele que era um mundo dominado, exclusivamente, por homens.

Na época, tal feito representou um grande avanço para a igualdade de género, devendo esse importantíssimo marco fazer nos refletir sobre o modo como havemos de proceder para minimizar as desigualdades de género no âmbito profissional.

Hoje, é com orgulho que podemos afirmar que em todas as profissões ligadas à Justiça, são mais as mulheres do que os homens: nas conservatórias e notários, nos escrivães de direito, nas magistraturas judiciais e do ministério publico e, mais recentemente, na advocacia.

Apesar de em Portugal, à semelhança da maioria dos países mediterrânicos, ainda permanecer uma cultura que promove o desenvolvimento dos homens em prejuízo das mulheres, a verdade é que, presença da mulher na advocacia é hoje um dado absolutamente incontornável.

É claro, nem tudo é tão simples quanto parece. A sociedade em que vivemos está estruturada sobre as diferenças demarcadas no passado e ainda encontramos algumas situações de verdadeiras injustiças, nomeadamente no que respeita a cargos de chefia.

O problema central na heurística das desigualdades poderá pôr-se, nesta área, nas sociedades de advogados, que lideram a área transacional da advocacia, cuja base da pirâmide humana era constituída, maioritariamente, por mulheres, enquanto os cargos de topo da carreira profissional eram ocupados por homens.

Mas também esta tendência, na advocacia portuguesa, tem vindo a mudar lentamente nas últimas décadas, nomeadamente no século XXI. Por um lado, porque a percentagem de mulheres inscritas na Ordem dos Advogados, correspondente a 55%, é superior à dos homens, e por outro lado, porque a cada passo e cada vez mais as sociedades de advogados utilizam critérios objetivos, comuns a homens e mulheres, para a progressão na carreira, baseados no mérito, na produtividade, e/ou na antiguidade.

E se são apontadas questões biológicas, relacionadas com a maternidade, como fortes barreias à ascensão da mulher aos cargos de chefia e, no geral, ao sucesso profissional, a combinação mútua dos benefícios da CPAS, com a ausência de pagamento de quotas implementada pela Ordem dos Advogados, no período da maternidade, ajudou a alcançar um segundo degrau na eliminação dessas desigualdades.

Da mesma sorte, na advocacia dos negócios existem hoje novas e diferentes medidas que ajudam a proporcionar às mulheres o equilíbrio familiar tão necessário a um work life balance, nomeadamente a consagração de planos internos de apoio à maternidade, que mais não são do que verdadeiros quadros de parentalidade, através dos quais as sociedades de advogados garantem a ausência total de impacto da maternidade na progressão de carreira e na remuneração.

Abre-se assim, aos poucos, um campo legítimo que confirma a presença da mulher na Justiça, desprovida de preconceitos e estereótipos, com um lugar próprio, igual ao do homem.

Apesar de reconhecermos que ainda há um longo caminho a percorrer, o setor da Justiça tem trabalhado para combater as diferenças de género. Todavia, para equilibrar o sistema, o mérito tem de estar na base da escolha, pois o mérito não tem primeiro nem segundo sexo. Não é a imposição de quotas que vai defender ou promover as mulheres. Não precisam ‘disso’. É a competência, o rigor e o profissionalismo devem ser reconhecidos quer em homens, quer em mulheres. Deste ou daquele jeito, esta deve ser a visão do século XXI, não só na área da Justiça, mas também em todas as restantes.