por Fátima Bonifácio
Andava eu na décima classe do Colégio Alemão, tinha uns quinze anos, quando me deparei, na disciplina de História, com a história do século XX. O professor, como todos os outros, era alemão. Herr Maybach, assim se chamava, era um homem novo – andaria pelos seus trinta e tal anos –, seco e exigente, sem sentido de humor. Chegámos à II Guerra Mundial. Contou-nos, com uma objectividade fria senão cruel, todos os detalhes dos crimes de guerra cometidos pelos nazis, culminando, como não podia deixar de ser, no Holocausto. Depois de nos introduzir à história do partido nazi, demorou-se na Kristallnacht (noite de cristal), um progrom perpetrado pelos alemães em Novembro de 1938. Descreveu-nos em pormenor, e com aparente placidez, como as SA (Sturmabteilung), aplaudida pelas populações, tinham nessa noite incendiado sinagogas, vandalizado casas, escolas e lojas de judeus, cujas montras partiram à pedrada. (Daí o nome “noite de cristal.) O festival anti-semita causou uma centena de mortos, e 30.000 judeus foram presos e levados para campos de concentração. Depois, durante a guerra, a perseguição endureceu e alargou-se, até que, tendo a guerra começado a correr mal, Hitler concebeu a ‘solução final’: exterminar industrialmente seis milhões de judeus espalhados por vários campos de morte. Herr Maybach não se poupou a esforços para nos transmitir as atrocidades escabrosas cometidas pelos alemães.
Na altura, uma total ignorante assaz desaustinada, ainda assim achei estranho este empenho do professor em não nos deixar dúvida sobre terem sido os alemães uns criminosos sem perdão. Foi muito mais tarde, retrospectivamente, que vim a perceber que tal empenho nascia de uma culpabilidade profunda e colectiva; e que a veracidade descarnada das suas narrações constituía uma espécie de expiação.
Nunca mais deixei de ver a Alemanha sob este ângulo. É sabido que a reunificação alemã, ocorrida em Outubro de 1990, foi negociada por Kohl e Gorbachev nas costas de François Mitterrand e Margaret Thatchter (Jacques Attali, Verbatim, 1995, vol. 3), e era já um facto consumado quando George H. Bush, Margaret Thatcher e François Miterrand entraram na dança diplomática destinada a consagrá-la oficialmente à face do mundo. Mitterrand, porém, exigiu, para dar a sua aquiescência, uma pesada moeda de troca: que a Alemanha reunificada renunciasse ao marco e aderisse ao euro, que, embora só viesse a ser criado em 1999, era desde 1960 o pilar de uma antiga ambição europeia, a de criar na Europa uma união económica e monetária.
Kohl cedeu, mas a cedência era imensa. Os habitantes da República Federal Alemã, após a brutal inflacção dos anos vinte e a instabilidade monetária verificada durante a Segunda Grande Guerra, tinham-se habituado a ver no marco a sua segurança pessoal e colectiva, bem como o símbolo da sua soberania. No entanto, Kohl cedeu: não queria deixar a sombra de uma dúvida de que a Alemanha de Hitler tinha sido evacuada no pós-guerra sem apelo nem agravo, e que a Alemanha reunificada estaria de alma e coração na Europa, partilhando os valores europeus, não havendo portanto razão para temer o regresso dos antigos demónios. Esta foi uma obsessão constante da que seria a maior potência económica da Europa: ser aceite sem reservas pela União Europeia e, se possível, estar sempre na linha da frente do europeísmo. Esta obsessão nascia (nasce?) de um sentimento de culpa aparentemente inexpugnável.
Da mesma maneira interpreto a actuação da chanceler Angela Merkel na crise dos refugiados de 2015. A União Europeia compraz-se desde sempre num discurso filantrópico, lembra e relembra os Direitos do Homem, salienta constantemente os deveres de solidariedade entre os povos: somos todos irmãos. Mas uns são mais irmãos do que outros. A avalanche de sírios que fugia de uma guerra crudelíssima não beneficiou da fraternidade apregoada. Merkel não hesitou: diversamente dos seus parceiros europeus, e contra a vontade da maioria do seu eleitorado em casa, escancarou as portas de entrada aos refugiados que passavam por um transe trágico. A enxurrada de refugiados criaria imensos problemas internos. Mas Merkel liderou a solidariedade europeia, deu aos europeus uma lição de humanidade. E com isto – mais uma expiação – consolidou a imagem da Alemanha como um país que não só conhecia o significado da compaixão, como actuava em conformidade com os apregoados valores europeus. A Alemanha era genuinamente europeia.
A última prova de que a Alemanha anda há décadas a expiar uma culpa é-nos dada pelo seu comportamento a respeito da guerra da Ucrânia. Quando se começaram a estudar que sanções poderiam demover o senhor do Kremlin de persistir em tão insidioso ataque a um país vizinho, cujas fronteiras violara num acto sem precedentes de desrespeito pelo Direito Internacional, o Ocidente vacilou quando foi posta em cima da mesa a possibilidade de expulsar a Rússia do sistema SWIFT. A Alemanha tem relações comerciais muito intensas e importantes com a Rússia. Mas eis que Olaf Scholz, chanceler alemão, se chega à frente e anuncia o seu assentimento à medida proposta. Este gesto precipitou a unanimidade ocidental. Mais uma vez, a Alemanha liderou a Europa (e não sei se os EUA). Podia ser ainda ‘mais europeia’?
Podia. Esta semana (escrevo a 2 de Abril), a Rússia exigiu que o gás que vendia fosse pago em rublos. Isto era contrário à letra de todos os contratos, que estipulavam o pagamento em euros ou, subsidiariamente, em dólares. Putin apareceu anteontem na televisão com um ultimato: a Rússia suspenderia o fornecimento de gás a quem não aceitasse esta inovação; ou rublos, ou nada. A Alemanha depende da Rússia para 60% do seu abastecimento de gás. Olaf Scholz não se amedrontou. No mesmo dia em que Putin tornou pública a sua chantagem, também ele apareceu na Televisão a afirmar, em tom muito assertivo, que a Alemanha pagaria as suas compras de gás em euros (ou dólares), em conformidade com os contratos existentes – nunca em rublos. E adiantou que, caso a necessidade imperasse, não descartava a possibilidade de racionar o consumo de gás. Será que se pode ser ainda ‘mais europeu’?
A II Guerra terminou há setenta e sete anos. A grande maioria dos que a começaram e a fizeram já morreu. É mais que tempo de a Alemanha estar em paz consigo mesma. Face à invasão russa da Ucrânia, soaram alarmes. Todos os Estados precisam impreterivelmente de capacidade de defesa das suas próprias fronteiras, ou das dos seus aliados. A Alemanha, por causa dos seus demónios, depois da reunificação reduziu o investimento em Defesa para níveis baixos sem precedentes. Chegou a hora de se armar contra inimigos imprevisíveis. E a União Europeia, como um todo, precisa de uma Alemanha forte economicamente, e militarmente. Quanto à própria Alemanha, precisa de enterrar de vez a memória culposa do nazismo, quase um século depois de este ter sido derrotado.