Não posso precisar bem a data, mas sei que foi a minha primeira intervenção na Casa do Artista. Acompanhado pela zelosa e dedicada enfermeira Andreia, entrei no quarto onde acabara de dar entrada Jorge Silva Melo.
Proveniente do hospital, onde fora submetido a uma cirurgia do foro ortopédico, este ‘senhor do teatro’, aparentando um ar sereno, estava ‘disposto a colaborar’ com vista a uma rápida recuperação. Trazia consigo projetos em curso e trabalhos por fazer, pelo que «não tinha muito tempo para estar doente». «Estamos aqui para o ajudar. Conte connosco», disse eu, depois de folhear o historial clínico. Sem mais palavras, ergueu o polegar direito em jeito de concordância.
Era o princípio de uma relação médico-doente muito curiosa, que me viria a marcar. Não o conhecia pessoalmente, mas tinha bem presente a sua obra e o seu passado como encenador, escritor, autor e ator.
Comendador da Ordem da Liberdade, cujo grau lhe fora atribuído em 2004, e com o título honoris causa pela Universidade de Lisboa no passado ano, este conceituado dramaturgo viria a receber também a Medalha de Mérito Cultural por parte do Governo, por ter sido uma referência para os profissionais do setor cultural e artístico, sem esquecer as duas companhias de relevo que fundou – Cornucópia e Artistas Unidos.
Passei então a visitá-lo regularmente, acompanhando a sua recuperação, sabendo que, para além deste episódio cirúrgico, existia outra doença, bem mais preocupante, cujo desfecho era previsível, a curto ou médio prazo.
Silva Melo, aliás, estava a par da sua situação clínica e, sem nunca se lamentar, fazia questão de a tratar pelo nome como ela é conhecida. «Uma coisa de cada vez», afirmava eu quando a conversa resvalava para esse lado. «O que eu quero, em primeiro lugar, é vê-lo a andar». E ele, sóbrio e discreto como sempre, voltava a erguer o primeiro dedo da mão direita.
Um dia, cruzo-me com ele no corredor e vejo-o numa cadeira de rodas, com ar apreensivo. Perguntei-lhe: «Então, que cara é essa? Posso saber para onde vai?». «Vou para o ensaio. Tenho uma estreia brevemente e há ainda muito trabalho pela frente.» Fiz um ar de admiração e ele rematou, enquanto se afastava: «Claro! ‘A vida continua’, lembre-se sempre desta frase».
De facto, todas as tardes, jovens atores compareciam na Casa do Artista para ensaiarem numa das galerias onde ele, levando aquela tarefa muito a sério, era o primeiro a comparecer.
Os sintomas da sua doença de base iam aumentando, mas Jorge Silva Melo, sem dar parte fraca, nunca faltava aos compromissos. Falava-me da sua peça, uma comédia engraçadíssima que pretendia estrear no Teatro S. Luís, mas as forças iam-lhe faltando.
Um dia, informam-me que ele está ansioso à minha espera, com urgência em falar comigo. Vou ao seu quarto e, para meu espanto, pede-me autorização para se deslocar ao Teatro – pois o ensaio, agora, era no palco. Eu sabia quão importante era para ele aquele desafio; mas tinha perfeita consciência de já não existirem condições para isso, apesar de estarem assegurados todos os apoios. Mesmo assim, olhos nos olhos, fui categórico: «Claro! A vida continua! Vá e olhe que eu quero ir à estreia». E, uma vez mais, levantando o polegar, respondeu com a mesma frase: «A vida continua!».
Ainda conseguiu os seus objetivos, por uma ou duas vezes. Até que, sem fazer disso um drama, reconheceu que já não podia mais. O fim estava a aproximar-se. Da Casa do Artista baixou ao hospital e no final da tarde do passado dia 14 de março deixou-nos.
Deste caso, destaco o facto de um doente que aceita totalmente a sua doença, sem nunca se ter revoltado.
Depois, o exemplo que nos deixa, de não querer parar, apesar das inúmeras limitações que tinha e de depender totalmente do apoio de terceiros para as necessidades básicas do dia-a-dia.
Finalmente, o aspeto médico, acerca do qual pode haver divisão de opiniões. Em minha opinião, um doente condenado pela própria doença, que manifesta ao médico que o acompanha, como um dos últimos pedidos, o desejo de ir ainda trabalhar, deve ver esse pedido respeitado – mesmo sabendo-se que tal não o beneficiará em termos clínicos. Deverá ser o doente a reconhecer por si não poder continuar, como foi o caso, e não por imposição médica.
Jorge Silva Melo partiu. Para trás, fica a recordação de um grande homem que deixa uma obra cheia de valor no plano cultural e artístico.
Furando a ‘regra’, quis estar presente na despedida. Foi a minha última homenagem. Deixei uma mensagem escrita que dizia apenas isto: «A Vida continua».
(À memória de Jorge Silva Melo)