O facto de a História não ter guardado para a posteridade o local concreto do seu nascimento bate completamente certo com a personalidade e com a vida de François Rabelais. Quanto à data em que veio ao mundo, idem. Há quem diga que no início de 1483, outros garantem o mês de Novembro de 1484. Muito provavelmente na província de Touraine por onde o seu pai deambulava na profissão de juiz pedâneo.
Para um rapaz que cresceu com um feitio exacerbadamente rebelde, a solução foi entregar a sua educação aos sempre prestáveis serviços da Igreja que, segundo garantem, molda personalidades e carateres com o ferro implacável da ordem divina. Assim sendo, François tornou-se num noviço da Ordem dos Franciscanos e, mais tarde, descambou em frade numa terriola chamada Fontenay-le-Comte, na zona de Poitou, sabedor profundo de latim e de grego e também com bases de Direito, de filologia e da ciência em geral. A curiosidade que dominava o seu cérebro inquieto servia para absorver tudo o que estudava como se fosse uma esponja.
Foi por essa altura que resolveu mandar os franciscanos às malvas, irritado que ficou pela Ordem ter proibido o estudo da língua grega. Uma questão confusa cuja explicação terei de deixar para outra oportunidade mas que, já agora, acrescento ter sido provocada por Erasmo de Roterdão num texto em que pôs em causa uma versão do Evangelho segundo São Lucas, esse homem natural de Antioquia que foi responsável pelos terceiro e quinto livros do Novo Testamento, o que só por si revela a influência que tinha sobre os seguidores da Santa Madre Igreja.
Rabelais recebeu autorização por escrito do Papa Clemente VII para se transferir para a Ordem Benedictina mas acabaria por abandonar a vida dos mosteiros para poder estudar Medicina, primeiro na Universidade de Poitiers e, em seguida, na Universidade de Montpellier. Como veem, tinha bicho-carpinteiro. E por isso não admira que o vamos encontrar em Lyon, em 1532, ocupando um lugar de médico no hospital de Hôte-Dieu, fazendo-se pagar supinamente e já escrevendo livros com uma voracidade digna do personagem principal do seu primeiro romance, Pantagruel o Rei dos Dipsodos, no original Les Horribles et Épouvantables Faits et Prouesses du Très Renommé Pantagruel Roi des Dipsodes, Fils du Grand Géant Gargantua. Catita! Eis um título que dá logo vontade de ler a prosa que traz agarrada. Comigo, pelo menos, foi assim. Com uma tirada daquelas, François convenceu-me que era preciso ir até ao fim. E em boa hora o fiz.
O brutamontes
O nome de Pantagruel nasce das expressões grega panta – tudo – e gruel – ter sede. Tanta sede, aliás, que enquanto bebé, Pantagruel bebia, diariamente, o leite recolhido de 4600 vacas. Estupor da criancinha! Rabelais gostava de brincar com as palavras e costumava assinar alguns dos seus livros como Alcofribas Nasier, um pentagrama do seu próprio nome. Pantagruel é também o nome de um dos demónios do folclore bretão especialista numa brincadeira com o seu quê de maldoso: despejar mãos-cheias de sal grosso na boca dos bêbados caídos na berma das estradas de forma a fazer com que acordassem com uma sede de enfiar de golada metade das cataratas do Niagara.
Badebec, a mãe de Pantagruel morre de parto, como se quisesse pagar a dívida de trazer ao mundo um ser monstruoso de força absolutamente sobre-humana e de apetite devorador e insaciável. Não, não era um filho bonito, embora não lhe faltasse a alegria e a tentação irresistível para a boa-vai-ela.
O romance de Rabelais começa precisamente com a descrição da sua obtusa personagem. Ficamos a saber que foi entregue aos cuidados de educador rigoroso chamado Epistemo e que, no fim de ter cumprido a sua educação intelectual (em termos de civilidade Pantagruel nunca foi um exemplo) instalou-se em Paris onde conheceu um trapalhão fala-barato de nome Panurge que lhe revela, em total momento de desespero, os problemas que carrega com a justiça turca e do tempo que sofreu a bom sofrer nos calabouços de Constantinopla.
Panurge é uma personagem secundária, mas ocupa um grande parte do livro de Pantagruel com as suas descrições arrepiantes do tempo em que viveu preso na Turquia e lançando o projeto de que, para manter a segurança do Ocidente, se deviam construir muralhas em redor de toda a Paris. Depois criou uma profunda amizade com um inglês intelectual, Taumast, e procurou tornar-se amante de uma senhora da alta sociedade parisiense, sendo repelido com brusquidão, algo que não deixou o seu amigo Pantagruel indiferente. Afinal eram ambos companheiros íntimos de ramboia, de refeições opíparas e de avanços diários sobre a população feminina da cidade até que Pantagruel recebeu a triste notícia da morte de seu pai e de que os Dipsodos tinham invadido a sua cidade de Utopia. Algo que lhe provocou borborigmos no estômago (e que estômago tinha a besta!) e lhe fez ferver o sangue até que borbulhasse nas carótidas. A raiva dominou-o por completo e a vingança tornou-se numa ideia fixa. Convenhamos que a narrativa de Rabelais se tornava, página a página, mais excitante. Sobretudo quando o nosso rotundo herói, apoiado pelo servilismo descarado de Panurge, Epistemon e Eusten, decidiu partir na libertação do reino que herdara e que lhe queriam tirar.
Les Horribles et Épouvantables Faits et Prouesses du Très Renommé Pantagruel Roi des Dipsodes, Fils du Grand Géant Gargantua é um livro confuso que tem a tendência para se ir tornando cada vez mais confuso à medida que Rabelais lhe enxerta factos históricos completamente anacrónicos, estatísticas deslocadas e um nunca mais acabar de anexins que não parecem bater a bota com a perdigota com o desenrolar da narrativa. A obra tem muito de surrealista e muito mais ainda de kitsch, ainda que os termos não fossem usados ao tempo do autor. A utilização do grotesco para demonstrar que a vida e a morte andam sempre de mão dada é um dos traços revolucionários de um livro que já praticamente ninguém lê, embora seja moderno como nenhum outro escrito nos quase quinhentos anos se seguiram até chegarmos aqui.
Em 1564, Rabelais pagou caro por escrever com tamanha dose de liberdade sobre as fraquezas do ser humano e os seus livros entraram no infame Index Librorum Prohibitorum exarado pelo Papa contra todas as obras que a Igreja considerava heréticas. Logo ele, que fora membro das Ordens Franciscanas e Beneditinas. Declarou-se um humilde cristão e foi com essa farda que se lançou numa guerra sem quartel contra os abusos praticados pelos príncipes e senhores da Igreja, desferindo golpes assassinos da mais pura ironia, de um humor robusto, fabricando com palavras as caricaturas mais ridículas da sociedade do seu tempo.
Desde que assumiu a profissão de médico, tornou-se capaz de descrever a podridão do corpo humano de uma forma tão crua que chocava, naturalmente, os seus leitores. As suas referências a feridas infetadas, a pústulas, a órgãos e membros defeituosos, a excrementos e fluidos corporais, foram rapidamente absorvidas pelos seus romances, fornecendo-lhes uma linguagem nunca utilizada até aí e que não admira ter deixado os comandantes da Santa Madre Igreja de cabelos em pé e unhas retorcidas. Jean de La Bruyère, um crítico, também ele de estilo bastante aceso, definiu assim os seus romances: «O vocabulário é rico e pitoresco, mas licencioso e porco. Estes livros são, no mínimo, inexplicáveis. Onde o mal existe fica ainda para lá do pior. Enigmas indecifráveis. Estão plenos do charme da ralé. Podem ser os livros dos deuses da gula mas, no geral, tornam-se perniciosos para quem os ler». Ora bem, isto é o que eu chamo um enorme golpe publicitário. Mas depois de ler o texto de La Bruyère haveria alguém que não fosse arrastado pela tentação de mergulhar nas aventuras de Pantagruel, o filho do gigante Gargântua?
O livro de Gargântua
Depois de uma batalha vitoriosa com os Dipsodos, Pantagruel decidiu matar todos os soldados inimigos menos um. Achou que, retomado o poder, poderia precisar de um escravo. Panurge funciona como seu parceiro de aventuras, um homem que Pantagruel muito estima porque, no dia em que se conheceram, lhe falou em 14 línguas diferentes. Pelo meio, Rabelais faz o que pode para instalar a desorientação no espírito do leitor. Por exemplo, no primeiro capítulo, gasta duas páginas e meia a referir os nomes de todos os antepassados de Pantagruel – 60 gerações até se chegar ao patriarca, um gigante chamado Chalbroath. É nesse momento que nega o Dilúvio, garantindo que outro gigante, Hurtaly, um comedor de sopa como não se vira igual, se limitara a segurar na arca de Noé à superfície das águas como um menino que brinca com um barquinho de papel. No capítulo sétimo surgem seis páginas que listam todos os livros existentes nas prateleiras de uma livraria de Paris. Depois entra na parte escatológica com um à vontade descarado: põe Pantagruel a destruir um exército de inimigos urinando sobre eles e inventa umas termas em França e em Itália onde em vez de água as curas se obtêm através de banhos de urina. Por mais do que uma vez procura justificar a ideia de que fezes e excrementos têm em si o poder de uma nova vida.
François Rabelais não ficou, decididamente, saciado com o primeiro livro sobre Pantagruel e Gargântua. Tanto assim que escreveu mais quatro posteriormente, tratando-se, assim, a obra completa de uma pentalogia. La vie Très Horrifique du Grand Gargantua, Père de Pantagruel, foi o segundo. O terceiro intitulou-se: Le Tiers Livre des Faicts et Dicts Héroïques du Bon Pantagruel. A cada volume, a erudição do autor, que era um poliglota, vai arranjando cada vez mais problemas ao leitor, sobretudo com a introdução de estrangeirismos, idiotismos e neologismos. No entanto, a imaginação não abundou para os títulos dos últimos volumes: Le Quart Livre des Faicts et Dicts Héroïques du Bon Pantagruel e Le Cinquiéme et Dernier Livre des Faicts et Dicts Héroïques du Bon Pantagruel.
Este pormenor do Bom do Pantagruel tem, obviamente, o seu quê de irónico já que a personagem não é tão repleta de virtudes como o cognome possa deixar crer. Talvez o seu acto de maior carinho para com os companheiros de batalha que o seguiam tenha sido o de os esconder a todos na boca numa fase acesa do conflito, aproveitando Rabelais para descrever ao pormenor o interior do orifício e da cavidade entre os lábios e a faringe do gigante.
Depois de se ter dedicado com esmero a Pantagruel, o autor sentiu necessidade de, antes de continuar a traçar o seu destino, dar a conhecer Gargântua, seu progenitor. Nasceu com uma inteligência tão apurada que surpreendeu o seu pai, e avô de Pantagruel, outro gigante como se está mesmo a ver, chamado Grandgousier. Este deixou-o ao cuidado de um tutor que o levou para Paris onde haveria de se destacar por qualquer razão. Afinal tudo acaba em pancadaria quando um grupo de padeiros se recusa a vender pães aos pastores que habitam as terras vizinhas das propriedades de Grandgousier. A recusa é levada a mal, o protetor dos pastores, um tal de Picrochole, dado a embirrações, inventa uma guerra, e Gargântua é obrigado a voltar a casa para tomar conta do assunto, aliás tal como acontecera com Pantagruel no livro anterior. Vencedor do irascível Picrochole, Gargântua volta a deixar o palco para a reentrada do filho que, no terceiro livro se multiplica em diálogos tão filosóficos como fantasiosos com o seu camarada Panurge. Tanto discutem e tanto um procura convencer o outro das suas razões que não veem solução se não a de pedir conselhos a Bacbuc (palavra hebraica para garrafa), a Divina Garrafa. É preciso que, para chegarem a ela, se preparem e se lancem numa viagem cheia de perigos na qual enfrentam tempestades que duram eternidades, um enorme monstro marinho, e um ataque por parte de Chitterlings, isto é, miúdos de animais. Pantagruel está no seu elemento porque os combates são culinários e o seu apetite insaciável. Pena que um monstruoso porco voador venha acabar com o banquete. Mas, até que as aventuras do Bom Pantagruel cheguem ao fim, Rabelais esgotou toda a sua capacidade satírica. Sim, porque a sua imaginação era igualmente insaciável.