O Amor em Tempos de Perestroika (Parte II)

A relação Amir e Masha não resiste à Perestroika. Ela é arménia e cristã, ele é azeri e islâmico. Mas Amir irá dar-lhe uma derradeira prova de amor.

por João Cerqueira

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Baku 1989

Mesmo nos dias de sol, o mar Cáspio não perde uma cor purpúrea misteriosa, como se o petróleo que existe debaixo dos seus solos tingisse a água. O vento que sopra de sul cria uma ondulação e a luz faz cintilar as ondas. Perto das rochas, gaivotas soltam guinchos. Ao longe, algures entre a água e o céu, há barcos de pesca em busca dos esturjões. Estou sentada na avenida marginal à espera do Amir há meia hora e começo a ficar preocupada. Desde que o pai dele morreu há um ano na guerra do Afeganistão, o estado de saúde da mãe é cada vez pior. Apesar de ele já ter terminado o curso e de faltar apenas um ano para concluir o meu, o nosso casamento foi adiado. Além disso, estas mudanças trazidas pela Perestroika deixaram as pessoas baralhadas e sem saber que rumo dar às suas vidas. O Gorbatchev tornou-nos cobaias de uma experiência da qual perdeu o controlo. Dantes havia segurança e as pessoas eram felizes. Agora, temos o caos e todos se queixam. Dizem que há mais liberdade, mas, afinal, o que é isso da liberdade? Eu nunca sentira nenhuma falta de liberdade. E por que motivo o Socialismo passou a ser uma coisa má e o Capitalismo uma coisa boa? Afinal, se Cuba resiste por que baixamos nós os braços? Querem apagar assim, sem mais nem menos, a nossa história? E depois, o que nos vai restar? Os meus pais têm razão: isto vai acabar mal.

Estou a meditar nisto quando ele aparece. Levanto-me. Tem os olhos vermelhos e os lábios contraídos. Mantém-se a alguma distância e eu sinto que não devo avançar. Uma folha de jornal, levada pelo vento, passa entre nós.

– É a minha mãe… está pior – diz.

– Não queres levá-la de novo ao hospital? – Já te disse que não – responde de um modo brusco. – Deixa-me ajudar-te.

– As minhas tias estão lá em casa há dois dias. Elas tratam dela, mas já pouco se pode fazer…

– Eu sei… mas, se não te importasses, gostava de estar ao teu lado neste momento difícil.

Dou um passo e abraço-o. Ele encosta a cabeça ao meu peito como uma criança.

– Ouço o teu coração – diz.

– Pertence-te.

Qaraçuxur 1989

Meia hora depois chegamos à casa da mãe do Amir. Ela vive num complexo de apartamentos nos subúrbios da cidade. Em tempos foi considerado um exemplo da arquitetura soviética, mas agora esta área cinzenta é desoladora. Os passeios estão cheios de buracos, os candeeiros partidos, há sacos de lixo por todo o lado e ratos à volta; as casas estão rachadas, as persianas quebradas e nas varandas há roupa a secar. Já só vivem aqui velhos.

As tias do Amir abrem-nos a porta: são duas gémeas com cabelos grisalhos e olhar estrábico. Olham-me de esguelha e não respondem ao meu cumprimento. O Amir baixa a cabeça e escapa-se pelo corredor, fazendo-me sinal para o seguir; elas vêm atrás de mim como dois cães de guarda. Ao entrar no quarto sinto um cheiro adocicado, enjoativo. É um espaço pequeno com paredes brancas e uma alcatifa verde. A mãe do Amir está deitada numa cama de casal. Na mesa-de-cabeceira há um retrato do marido com o uniforme militar e condecorações de guerra. Ela tem os olhos fechados: os cabelos são brancos, a pele amarelada e os lábios roxos. Está muito magra e respira com dificuldade. O Amir ajoelha-se ao pé da cama e beija-lhe o rosto. Coloco-me ao lado dele e fico algum tempo sem saber o que fazer. Conheço-a há mais de quatro anos e gosto muito dela. Ela aprovava o nosso casamento e dizia que eu lhe iria dar muitos netos. Pego-lhe na mão fria e começo a falar-lhe ao ouvido.

As tias chamam o Amir para comer – tratam-me como se eu não estivesse lá. Percebo que estão cansadas e se querem ir embora. O Amir agradece-lhes e elas saem sem se despedirem de mim. Dali a pouco, regressamos ao quarto e ele liga um abajur vermelho – a luz faz a mãe dele parecer um boneco de cera. Depois pede-me para lhe mudar as fraldas. Nunca fiz tal coisa, mas não hesito – e ele volta as costas. Quando termino, sentamo-nos numas almofadas postas no chão e acabo por adormecer com a cabeça no seu colo. Pela madrugada, a mãe dele começa a gemer. Está a delirar e chama pelo marido. Eu volto a pegar-lhe na mão, o Amir acaricia-lhe o rosto e passa-lhe um pano molhado na testa, mas ela continua agitada. Este tormento prolonga-se por mais de uma hora, tornando-se cada vez mais fracos os seus sussurros, até que, por fim, deixa de respirar.

 

Baku 1991

Quando acabou a guerra do Afeganistão, o meu pai foi despedido e começou a beber demais. Está com um aspeto miserável: tem a cara inchada e papos nos olhos e passa dias sem tomar banho nem fazer a barba. Por vezes torna-se agressivo e trata mal a minha mãe – já a encontrei mais de uma vez a chorar na cozinha. Ele não se consegue adaptar a estes novos tempos. Os amigos tornaram-se capitalistas e agora vendem calças de ganga americanas, mobílias italianas, eletrodomésticos alemães, enfim tudo o que dantes não havia – o próprio camarada Volkov criou uma empresa de segurança. Estão ricos, arranjaram mulheres da idade das filhas, têm guarda-costas e viajam pelo mundo. Dantes falavam de Dostoiévsky e Toltsoi e agora só falam de dinheiro. Mas o meu pai não consegue. Ele fora educado para odiar o lucro e detestar o comércio. Ele continua a acreditar que o Socialismo é a única salvação da humanidade e é capaz de bater em quem disser mal de Estaline. Não se lhe pode pedir que se transforme noutra pessoa.

Eu também não consigo transformar-me noutra pessoa como fez a Nádia. Ela abandonou a carreira de medicina e tornou-se modelo. Diz-me que é muito melhor gozar a vida do que lidar com a morte e que se ganha mais dinheiro a desfilar nas passerelles e a tirar fotografias do que a tratar doentes. Agora vive em Moscovo, namora com um diplomata inglês e aparece nas revistas. Ela não esqueceu a lição dos Pioneiros de tentar ser a melhor em tudo o que se faça, mas eu sei no que se tornou: uma puta de luxo ao alcance dos amigos do meu pai. A Nádia julga-se uma princesa, mas irá levar ferroadas piores do que as das vespas.

Um dia, porém, a esperança parece renascer: na televisão vemos tanques nas ruas de Moscovo e dizem que o traidor do Gorbatchev foi derrubado. Pela primeira vez, vejo a minha mãe a rezar. O meu pai está eufórico e exige sangue.

– Acabou-se a balbúrdia. Têm de ser todos fuzilados!

Mas eu vejo o povo nas ruas e não estou tão segura de que a revolução vá triunfar. E por que é que as pessoas se voltam contra o exército? Estarão a ser manipuladas pelos americanos? Uma amiga disse que o Gorbatchev abriu a jaula e as feras estão à solta. Cada vez estou mais confusa.

Então vemos o Ieltsin subir para um tanque. O povo aplaude-o e os militares obedecem-lhe. Ele levanta os braços em sinal de vitória e começa a discursar. Nesse momento, percebemos que está tudo perdido.

Mas o pior estava para vir. Dias depois é anunciado na televisão que a União Soviética já não existe, que o meu país acabou e que agora o Azerbaijão é reconhecido como uma nação independente.

O meu pai não suportou tudo isto e teve um ataque um mês depois. Levámo-lo para um hospital público onde os médicos e as enfermeiras exigiram dinheiro para o tratar. Porém, no dia seguinte apareceu um doente mais rico e tiraram-no do quarto para o colocar numa cama, posta num corredor, onde acabou por morrer.

Nenhum dos seus antigos amigos compareceu ao funeral.

O Amir inventou uma desculpa e tão-pouco apareceu.

 

Estas mudanças políticas também destruíram a nossa relação. O terramoto partira a placa continental onde vivíamos e cada um ficara numa parte diferente. De repente, já não éramos os dois soviéticos: eu era arménia e ele era azeri. Para mim isso não tinha importância nenhuma, mal conseguia compreender tal distinção, mas ele começou a tornar-se frio, a evitar estar comigo e a não atender o telefone. Um dia fui bater à porta de sua casa e ninguém me respondeu; depois, uma das tias veio à janela e fez-me sinal para me ir embora, como se enxotasse um animal.

 O nosso amor estava lá no alto, como um satélite a brilhar no espaço, mas a Perestroika lançara um míssil que o atingira.

Já não o via há três semanas quando, num fim de tarde à saída das aulas, o descubro à minha espera junto ao portão da faculdade. A princípio, nem o reconheço: deixou crescer a barba, está mais magro e usa umas calças como as dos soldados. À luz amarelada dos candeeiros, assemelha-se aos vagabundos que começam a aparecer nas ruas. Avanço na sua direção a tremer, como um condenado para a execução. Há gente a passar, mas ele, que era tão cioso da sua privacidade, começa a falar alto sem se importar com ninguém.

– As minhas tias e os meus primos nunca aceitarão o nosso casamento. Agora os arménios e os azeris são inimigos. É melhor nunca mais nos vermos.

– Eu não sou inimiga de ninguém – protesto. E podemos ir viver para outro lugar, longe disto tudo.

Ele abana a cabeça.

– Há uma guerra em Karabakh e tenho a obrigação de defender o meu povo.

– Queres morrer na guerra, tal como o teu pai? – grito-lhe.

– Não vou morrer. O meu Deus protege-me porque também vou lutar contra a tua religião.

Fico desconcertada ao ouvi-lo falar de religião.

– O quê? Deus? Mas qual Deus? Nós nunca acreditamos nessas coisas. Ensinaram-nos que a religião era superstição, o ópio do povo…

– Não blasfemes. Eu converti-me e agora sou um novo homem. – E bate com a mão no peito.

– Um novo homem? E esse novo homem já não sente nada por mim?

Ele fica calado e morde os lábios – a boca desaparece debaixo da barba.

– Responde – insisto. Porque eu continuo a amar-te e nada vai alterar os meus sentimentos. Nem a raça, nem a religião, nem a política.

Tento abraçá-lo, mas ele repele-me. A mão que dantes se entrelaçava na minha transforma-se agora numa barreira. Os seus olhos, outrora tão brilhantes quando me via, estão baços.

– Vai-te embora. Pega na tua mãe e vai para a Arménia ou para a Rússia. Esta não é a vossa terra.

Volta-me as costas, empurra quem lhe surge pela frente e desaparece.

O satélite caíra na terra e desfizera-se em pedaços.

 

Caminho sem rumo pela cidade há algum tempo quando sinto um cheiro parecido com o da relva. Paro. Depois corro nessa direção como se lá pudesse encontrar uma quinta com uma plantação de tomates, cheia de sol, pássaros e insetos, onde voltasse a ter catorze anos.

 

Ele tinha razão: os azeris e os arménios tornaram-se inimigos, mas não fomos nós que começamos o conflito. Jornais, líderes políticos e dirigentes religiosos incitaram o ódio contra nós. De repente, tornamo-nos o alvo da fúria popular: somos considerados invasores, exploradores, ladrões. De repente, somos as cobras e os lacraus. Os nossos vizinhos deixaram de nos falar, nas lojas recusavam-se a atender-nos e nas escolas expulsaram os alunos arménios. Enquanto os soldados russos não se retiraram, a violência ficou-se pelas agressões, vidros partidos e insultos escritos nas paredes. Mas, depois, quando não restou ninguém para nos proteger, deu-se um massacre.

Nunca tenhas pena dos teus inimigos.

Grupos armados juntavam-se na praça Lenine e começavam a patrulhar as ruas: homens, mulheres e adolescentes à nossa caça. Começaram a aparecer arménios mortos com tiros na cabeça, facadas nas costas e enforcados em árvores. As mulheres tornaram-se um alvo fácil para os violadores. As crianças eram raptadas e nunca mais apareciam. Uma milícia entrou numa casa e matou a tiro uma família de seis pessoas; a filha mais nova, uma menina de doze anos, tentou escapar para o cimo de uma árvore, mas os assassinos dispararam contra ela até a menina tombar a seus pés como um pássaro abatido. Uma igreja foi incendiada com os fiéis dentro e morreram queimadas vinte pessoas. Uma grávida foi atirada pela janela do prédio onde vivia.

As novas autoridades não faziam nada para impedir isto e, dizia-se, participavam nestes atos, tomavam posse das casas vazias e repartiam as pilhagens.

De onde veio este ódio e esta impiedade, se até há uns meses éramos irmãos e camaradas? A solidariedade, o homem novo, o paraíso na terra, onde é que isso foi parar? O que é que falhou? Seriamos mesmo feras dentro de uma jaula?

A Nádia ofereceu-se para nos acolher em Moscovo, mas a minha mãe recusa-se a partir. Diz que esta é a sua terra e que vai morrer aqui. Diz que está farta de tudo e que não quer viver neste novo mundo. Será que conseguiremos sobreviver?

O Amir entra esbaforido na cozinha e empurra os outros homens. Tem o olhar esgazeado e a boca aberta. Há sangue na sua camisa. Ficamos a olhar um para o outro, ele ofegante e eu a tremer, tal qual como quando me salvou do Micha. O Amir começa a abanar cabeça e a mexer os lábios, mas não consegue dizer nada. Correm lágrimas pela sua face.

O antigo instrutor dos Pioneiros põe-lhe a mão no ombro.

– Ela agora é nossa, tu já te divertiste bastante.

Dois homens vêm buscar-me, empurram com os pés a minha mãe para nos separar e levantam-me do solo.

– Esperem – grita o Amir.

Então abraça-me, depois o seu braço direito solta-se e sinto uma pistola apontada ao coração. Ao ouvido diz-me «perdoa-me».