Por Nuno Cerejeira Namora, Fundador da Cerejeira Namora, Marinho Falcão & Associadose Advogado Especialista em Direito do Trabalho
No dia em que escrevo estas linhas chove no Porto. Ignorando a adversidade meteorológica, centenas de motas e bicicletas aglomeram-se junto aos restaurantes das cadeias de fast-food e aos shoppings, transportando tantas outras centenas de homens e mulheres de impermeável e cúbica mochila às costas. Minuto a minuto, em função do que ditam as notificações dos telemóveis sempre conectados às plataformas digitais, lá vemos um motociclo a partir e outro a chegar. Este espetáculo quotidiano, hoje habitual nas cidades de média e grande dimensão, nunca cessa de me espantar. E espanta-me por diversas razões, muitas delas jurídicas, mas outras tantas sociológicas e culturais.
Esta nova (se não no conceito, pelo menos na dimensão) forma de oferecer e prestar serviços aos consumidores representa, de certa forma, o triunfo da rápida e vibrante marcha da revolução digital. É fascinante perceber como uma forma de negócio afinal tão simples e elementar (e que se limite a colocar em contacto através de uma plataforma digital aqueles que procuram um serviço e aqueles que estão disponíveis para o oferecer) se transformou numa componente que já se pode dizer fundamental e imprescindível nas contemporâneas organizações sociais, para o que muito contribuiu a pandemia e os seus rigorosos confinamentos e limitações ao funcionamento do comércio e da restauração. De facto, é curioso pensar como muitos isolamentos de catorze ou mais dias foram amenizados pela circunstância de, à distância de um toque num ecrã, podemos ter à nossa porta uma refeição pronta, uma caixa de paracetamol ou as compras da semana. Ou seja, graças aos valiosos serviços das plataformas digitais e dos seus prestadores, que durante aquele período nunca pararam, pudemos, dentro das nossas casas, levar uma vida de relativa normalidade, compensando a nossa falta de mobilidade com a mobilidade de outros que se prestaram a entregar-nos o que considerámos essencial ou caprichoso.
Tudo isto não se faz, obviamente, sem críticas ou receios. Desde logo, e ainda no campo sociológico, estas estruturas digitais acentuam o desenvolvimento de uma sociedade vinte e quatro horas, onde impera o imediatismo do clique e a perniciosa ideia da permanente disponibilidade dos outros. Substituímos com toda a facilidade o nosso esforço e o nosso tempo pelo esforço e tempo do outro, atribuindo-lhe o valor muitas vezes irrisório de uma taxa de entrega de dois euros. Enfim, como muitas vezes acontece nas dinâmicas sociais, exigimos de muitas pessoas, tantas delas particularmente vulneráveis, aquilo a que não nos prestaríamos. Esta mentalidade, parecendo um detalhe de somenos, é significativa e, a longo prazo, coloca em causa a coesão do tecido social, perpetuando no tempo o elitismo (mas aqui francamente mais popular) das estruturas sociais.
Sem negar os profundos significados destas novas formas de organização da vida contemporânea, interessa-nos mais o quadro jurídico em que estas atividades se desenvolvem. Que fique claro: os serviços prestados nas e para as plataformas digitais são também, e na maioria dos casos, trabalho subordinado, sendo os seus prestadores tão trabalhadores dependentes como os demais. Só não pensa assim quem se concentra excessivamente nas especificidades (que as há…) destas atividades, trocando a floresta pela árvore. Na sua essência, e não obstante todos os abundantes embustes, artifícios e disfarces que podem ser empregues para simular uma independência destes trabalhadores ou pelo menos para tentar escapar às presunções de laboralidade do Código do Trabalho, a atividade destes prestadores desenvolve-se na dependência das plataformas digitais e das suas rígidas regras, que contratam e despedem sem formalismos ou procedimentos. Pode até não haver horários prefixados, mas há, muitas vezes, janelas horárias em que estes profissionais têm de estar disponíveis para não sofrerem penalizações. A própria plataforma digital, mais do que um meio de ligação ponto a ponto entre quem procura e quem oferece o serviço, é, para os trabalhadores, um verdadeiro (e o principal) instrumento de trabalho. No mais, é a plataforma que dita em cada momento para onde é que o prestador tem de se dirigir, qual o tempo em que deve chegar e o que deve transportar, conformando, assim, a sua prestação. E, mais do que tudo, o fundamento básico que fez emergir o Direito do Trabalho verifica-se também, e talvez com mais intensidade, em relação a estes homens e mulheres: são economicamente dependentes dos seus empregadores e vivem numa relação de poder profundamente assimétrica, sob o jugo do ‘tudo ou nada’, especialmente vulneráveis e precários.
Que os quadros tradicionais das leis laborais não estão ainda preparados para estas novas e mutantes realidades é um verdadeiro truísmo. Mas talvez seja tempo de, face à recentemente revelada imprescindibilidade destas pessoas, olharmos de frente para os problemas que enfrentam e procurarmos soluções adaptadas às especificidades das suas atividades, conciliando a flexibilidade destes serviços com os mais básicos direitos laborais. Isto se quisermos evitar criar e alimentar uma nova classe de escravos digitais.