Cerca de duas centenas de migrantes moldavos estarão a ser escravizados em Serpa, cidade do concelho de Beja. Além de trabalharem horas a fio sem condições, nem sempre auferem um salário. A remuneração, suspeita-se, estará a ser enviada para uma pessoa que se encontra fora do país.
A denúncia foi feita, no Twitter, por Catalin Schitco, estudante universitário de 20 anos, de origem moldava e residente em Portugal há mais de 18 anos. “Fui abordado por uma moradora de uma aldeia em Serpa, avó de uma amiga próxima, que me contou a história. Falou comigo pela notoriedade que sabe que tenho aqui e na política”, começa por explicar o jovem ao i, adiantando que a mulher conseguiu comunicar com um imigrante que sabe italiano.
“São às centenas e têm condições precárias. Nessa conversa foi-lhe dito que os trabalhadores não recebem salários fixos. O dinheiro é enviado de forma centralizada para uma pessoa no estrangeiro que depois o redistribui, sem qualquer tipo de periodicidade fixa ou garantida”, revela, esclarecendo que os imigrantes “fazem turnos alternados entre vários países. Ora estão em Portugal, ora se movimentam por outros países da Europa”, sendo que “Itália foi um dos exemplos dados na conversa”.
O universitário, que frequenta o Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL), adianta que vários grupos de Facebook, criados por cidadãos moldavos, denunciaram situações semelhantes no Alentejo. “Falta perceber se existe correlação entre os grupos e se estão sob a influência da mesma chefia”.
“Quando questionado acerca do motivo pelo qual continuava a trabalhar assim, o migrante moldavo justificou que o patrão não lhe dava dinheiro porque o retinha e descontava para a Segurança Social para garantir a cidadania europeia”, adiciona, rematando que “parece ser este o modus operandi da rede”.
“A GNR, ao que parece, foi avisada já inúmeras vezes com queixas que nunca deram em nada”, lamenta. O i entrou em contacto com a força de segurança para obter informações. “A GNR não tem registo de denúncias ou de ocorrências relacionadas com o descrito, na zona de Serpa. A Guarda teve conhecimento de uma publicação de uma rede social com factos idênticos à questão colocada, sendo a mesma objeto de envio ao Ministério Público”, clarifica.
“A Guarda tem estado particularmente atenta à situação dos migrantes”, refere a resposta, sendo salientado que “tem realizado ações de policiamento e de fiscalização, intensificadas desde janeiro, com o objetivo de detetar possíveis situações de exploração de trabalhadores, tráfico de seres humanos, imigração ilegal, exploração laboral, bem como de outros fenómenos associados, no sentido de garantir a maior proteção possível aos migrantes que se encontram no distrito de Beja a desenvolver a sua atividade laboral ou nele a residir”.
Até à hora de fecho desta edição, o i não recebeu qualquer resposta do SEF, da Procuradoria-Geral da República ou da Câmara Municipal de Serpa.
“Não fico surpreendida” Para lá de todos os casos que têm sido relatados pelos órgãos de informação, como o dos trabalhadores das explorações agrícolas de Odemira, a verdade é que esta realidade também não era desconhecida pela comunidade moldava. Andrei (nome fictício), que se encontra na casa dos 20 anos e está há mais de uma década em Portugal, conta ao i que teve conhecimento de algo semelhante que terá acontecido em Lisboa há aproximadamente 8 anos.
“Era mais ou menos a mesma coisa. Era prometido um trabalho e salário às pessoas, vinham para cá e depois, quando chegavam, ficavam todas numa casa e recebiam muito pouco. Quase não conseguiam ter dinheiro para voltar para casa”, narra, acrescentando que “iam trabalhando e quem recebia o dinheiro era um senhor que só lhes entregava parte e ficava com o resto”.
Elisabeta Necker, imigrante de 46 anos que vive em território nacional há 22 e desempenha o cargo de presidente do executivo da Associação Doina Algarve, que representa os imigrantes moldavos e romenos que optaram por se instalar no Sul do país, confirma.
“No passado já existiram vários problemas, principalmente, na zona do Alentejo. Houve sempre um esforço por parte das autoridades para combater isto, mas nunca acaba. Temos apoiado muito essa área, mas não recebemos nenhuma denúncia recente”, declara a mulher que tem duas filhas que nasceram cá. “Não fico surpreendida. Acho que é importante dizer que sempre que houve problemas as autoridades agiram com a maior rapidez”.
“Acho que isto nunca deixou de acontecer, mas há zonas onde se sente menos ou fica bem ocultado. Estas pessoas têm medo de falar e, sobretudo, não conhecendo a língua nem o território… Não é fácil”, confessa, explicando que a Doina não só está em contacto com organismos como a Cáritas, como colabora com os diversos consulados. “Eles têm toda a informação e tentam agir”, assegura.
“Eu, pelo menos, e as pessoas que conheço, não sentimos que haja preconceito. Sinto uma diferença na abordagem feita no Algarve e no Centro quando comparada com aquela que acontece no Alentejo. Aqui estamos habituados a lidar com estrangeiros, lá não e é normal, estranham mais a diferença”, admite, alinhando-se com Elísio Estanque, sociólogo, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais da mesma instituição.
Há choques culturais “que se traduzem em ações violentas e de travagem, assim como preconceitos, porque quando uma crise se aproxima, as populações locais inventam inimigos para justificar problemas”, explicou ao i, em entrevista, no mês de junho do ano passado. “A culpa nunca é nossa, é sempre do outro. Quando um imigrante chega, está disposto a aceitar trabalhos mal pagos, algo que os locais não aceitam. Mesmo assim, é-lhes apontado o dedo por ‘roubarem’. Trata-se de uma tendência humana, mas devia ser combatida com mais informação, educação e clareza pelas autoridades”.
“A questão do tráfico de força de trabalho não é nova. Moldavos, nepaleses e indianos são algumas das origens de trabalhadores sazonais que estão a ser explorados, em locais como as estufas, e muitas das vezes em condições degradantes”, observa agora. “Explorados e até escravizados. Por um lado, por empresários sem escrúpulos, por outro, por redes mafiosas internacionais dedicadas a essa prática”.
“E o problema é que as autoridades, como a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), não têm meios nem condições para combater adequadamente estas situações”, analisa o docente universitário que, nessa mesma entrevista, destacou que “as autoridades e os governos encaravam” o panorama de Odemira “como um custo a pagar de um setor que revitaliza a economia portuguesa”.
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