Por Sofia Aureliano
A invasão da Ucrânia pela Rússia é um ato de guerra convencional, comparável a tantos outros que já vimos acontecer na história recente. Assume, no entanto, um papel preponderante na agenda geopolítica internacional, de forma atipicamente célere e exponencial.
Este é um conflito com fronteiras delineadas, mas por acontecer na era do digital, atinge uma dimensão global, com as posições a serem facilmente manuseáveis, exacerbadas e polarizadas e a propaganda a ganhar asas.
Como nunca antes, o mundo ocidental está apto a acompanhar todas as movimentações, testemunhar os obstáculos logísticos das duas partes e a desproporção das forças e sustentar uma formação de opinião generalizada.
O Ocidente tem eco diário nos meios de comunicação social e representa uma corrente de poder contra Putin e a sua megalomania.
Para além das sanções económicas, políticas e culturais que, provalmente, Moscovo já antecipara quando delineou a estratégia de ação e tomou a decisão de atacar a Ucrânia, Putin tem um desafio adicional que talvez não tenha acautelado previamente: no mundo atual, mais do que ser o mais forte, é preciso parecer o mais forte. Mais do que pelo número de espingardas, aviões de combate ou de recursos humanos nas formações militares, a força mede-se, hoje, sobretudo, pela capacidade de alavancar aliados, galvanizar para uma ação coletiva, transmitir uma única mensagem e capitalizar relações institucionais.
Apesar de sofrer as consequências duras da guerra física no terreno, sustentadas pelo desequilíbrio evidente entre contingentes militares, a Ucrânia segue na frente na batalha digital. É a sua mensagem que colhe mais adeptos, reúne consensos, e os seus representantes são os únicos tidos como heróis. O mundo ocidental foi chamado a tomar posição e espontaneamente deu o veredito: está inequivocamente do lado dos ucranianos.
A era digital abre, assim, caminho para um novo capítulo da história das relações entre os Estados, favorecendo tanto a ostracização de inimigos coletivos, como a construção de perceções generalizadas de nova conjuntura, receio de instabilidade e sensação de insegurança. O facto de ser possível assistir ao desenrolar dos acontecimentos em tempo real potencia o nosso sentimento de pertença e impele-nos, de forma mais eficiente, para a ação. Sabemos que o que vemos não é ficção, são histórias da vida real e estão a acontecer, neste momento, à nossa porta. O que significa que não há distância no espaço nem no tempo.
Acomete-nos espontaneamente a ideia de que poderia ser a nossa vida a ser interrompida, a nossa família a ser separada e o nosso país a ser invadido. Esse receio consistente, aliado à necessidade latente de esbater a impotência, evoca a generosidade dos indivíduos e a solidariedade dos estados. Esta é outra grande consequência de uma sociedade mais informada, que se quer mais justa, mais digna e sem fronteiras.
Um terceiro fator a considerar nesta guerra em contexto digital é o alargamento das formas de combate. Nada superará o terror associado à ameaça nuclear, mas essa é uma cartada que só será jogada em última instância. Porque é prejudicial a todas as partes. Até lá, e muito provavelmente até ao desfecho deste conflito, valerão outras armas como as tradicionais que compõem os dispositivos militares, e as digitais, cujo alcance ainda é desconhecido. A guerra cibernética já é uma realidade e não existem manuais de História para nos orientar. Sabe-se, contudo, que as suas consequências podem ser tão magnânimas quanto devastadoras. Por ter noção deste potencial disruptivo, a Ucrânia vê o acesso ao digital como uma materialização de vantagem no campo de batalha e, enquanto pede armas e aviões aos aliados para fazer frente aos invasores no terreno, dirige à comunidade internacional pedidos extremados para que a Internet seja vedada à Rússia.
O real impacto do digital no conflito está ainda por determinar. Existe, no entanto, a certeza de que é um palco que é preciso dominar. Essa é a intenção de Putin quando, também ele, escolhe trilhar o caminho do isolamento, com o objetivo de manter o império numa bolha fechada sobre si mesma.
Foi esse o argumento que esteve na base da proibição de atuação decretada à Meta Platforms pelo Ministério Público russo, o que impede o acesso da população ao Facebook, ao Twitter e ao Instagram, e impõe alguns condicionamentos à utilização do WhatsApp. A justificação pública é de que estas plataformas estariam a intentar atividades extremistas contra a Federação Russa.
Na prática, esta ação significa um duro golpe para os cidadãos russos, condicionando-os a uma narrativa oficial e privando-os de acesso a informação pertinente sobre as ações em nome da Rússia, sem o crivo da visão do líder. Também Putin acredita que o acesso à visão ocidental do conflito poderá gerar instabilidade interna e consubstanciar a derradeira pressão social capaz de levar a um retrocesso na investida russa.
Este perigo (para Putin) não está afastado, na medida em que a Rússia não efetivou ainda um total encerramento ao mundo. Por duas razões. Primeiro, porque apesar de ter vindo a apostar numa robusta infraestrutura tecnológica para concretizar a total repressão da liberdade de expressão, à semelhança do que acontece na China, não tem ainda a capacidade instalada para o fazer. Segundo, porque prevalece o medo da reação pública a novos patamares de repressão. Para controlar a situação, Putin aposta em manter a aparência de uma sociedade aberta, justificando as limitações com silenciamento de inimigos contra a pátria. Enquanto isso, vai investindo na propaganda para gerir eventuais descontentamentos públicos, e mantém a voz viva nas plataformas onde domina a visão ocidental. No Twitter, por exemplo, o Kremlin gere centenas de contas que se mantêm ativas.
A nova era e as investidas no palco digital são matéria-prima incontornável para investigação, nacional e internacionalmente. Por cá, por exemplo, o tema já dá o mote para reflexão na Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI). Uma consequência indeclinável para compreender a verdadeira história desta guerra. Porque o que ontem era “futuro”, hoje é “agora”.