“Quem é você? / Que cozinha na minha casa e me leva café na cama / Quem é você? / Que desnuda meu corpo, me dá banho e lava minhas peças mais íntimas / Quem é você? / Será que tem mãe, pai, família? / Sabe comer de garfo e faca? (…) Como consegue viver a vida assim, na casa dos outros, sem os seus próprios móveis / Quem é você? / Parece que não tem vontades, fala sim para tudo, não me desobedece nunca, até quando estou errada (…) Come e dorme na minha casa, te deixo à vontade e ainda quer aumento de salário? / E agora esta ingratidão?! Não é possível, mais dia de folga / Um dia é o suficiente / Ah! Vou cortar suas asas antes que queira voar / Também não é só por isso, fica sempre me olhando, me perseguindo com este olhar, parece um cão sem dono / Não tenho mais paciência e também tem esse perfume barato que fica na casa inteira / Não, decididamente não quero mais, mas antes de sair me responda uma pergunta / Quem é você?”.
Ei-lo, o excerto de um poema que Cláudia Canto, atualmente com 43 anos, escreveu depois de ter emigrado para Portugal e experienciado a vivência de uma empregada interna. No caso da escritora natural de São Paulo, foi trabalhar para a residência de uma família natural da África do Sul e sentiu na pele a xenofobia de que a comunidade brasileira é alvo em Portugal.
No entanto, esta parece ser uma realidade cada vez mais presente que tem crescido a um ritmo assustador. No passado dia 14 de abril, O Globo veiculou que as denúncias de xenofobia contra brasileiros, em território nacional, aumentaram 433% desde o ano de 2017. A informação foi apurada pelo jornalista Gian Amato, que a partilhou na coluna ‘Portugal Giro’.
De acordo com os dados que a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR) adiantou àquele órgão de informação, tinham sido registadas 18 queixas há cinco anos e esse valor subiu para 96 em 2020 – com 45 em 2018 e 74 em 2019 –, tendo sido a nacionalidade brasileira o motivo do preconceito. E o número de denúncias anda de mãos dadas com a quantidade de cidadãos brasileiros que decidem procurar uma vida melhor no país irmão, na medida em que, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) existiam 85.426 imigrantes daquela nacionalidade em 2017, 113.636 em 2018, 151.304 em 2019, 183.993 em 2020 e 209.558 no ano passado (este é um número provisório).
“Sou oriunda de uma favela e foi graças à natureza de Deus que comecei a escrever e a ler os grandes clássicos. Então, me coloquei numa bolha e fui crescendo naquele ambiente. Por volta dos 25 anos, resolvi ir para Portugal porque acreditava que ia conhecer outra cultura. Obviamente que caio praticamente na estatística dos emigrantes e fui trabalhar como empregada doméstica, mas interna”, começa por explicar, em declarações ao i, a mulher que nasceu e cresceu em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo.
“Parece que entrei no século XVIII. Eles eram muito muito antigos. A minha situação mais angustiante: estava me sentindo numa prisão. Como sou muito livre, artista, estar naquela situação de não contacto com o outro e não poder expressar minha arte, num ambiente em que nada era meu… Vivi uma vida emprestada”, desabafa Cláudia que, depois de ter publicado a obra Morte às Vassouras, teve a oportunidade de ir estudar para a Universidade de Oxford.
“Tem mulheres que levam isso na boa. Não tão na boa, porque ouvimos muitas queixas, mas quando falamos de xenofobia… Não dizem ‘Não gosto de você’, ‘Sai daqui, sua negra, sua brasileira!’. Nada disso é explícito, mas é nos detalhes, nas entrelinhas que você percebe. Por exemplo, o desprezo dos filhos dos patrões, um casal de terceira idade. A patroa me dizia que podia sair comigo à rua porque eu não sou negra”, lamenta. “Era uma cidadã de segunda linha. A minha inteligência, para eles, não importava em nada. São situações em que as entrelinhas da xenofobia estavam implícitas nas paredes daquela casa e no comportamento deles”.
“Eram oriundos da África do Sul e ainda traziam os costumes arcaicos das tradições. A empregada doméstica não pode, imaginemos, colocar calça comprida. E ouvia piadinhas como ‘Agora é a época do HIV, se for para lá pega logo’. Me doía muito porque sabia que tinha muito mais para oferecer do que aquilo que estava oferecendo, mas em nenhum momento entenderam a importância de perceber a troca cultural”. Por isso, Cláudia pôs mãos à obra e escreveu o poema ‘Quem é você?’, recordando os tempos em que viveu isolada e foi maltratada.
“Foi uma mescla de xenofobia, preconceito racial e preconceito social. Hoje utilizo isto para explicar às outras mulheres que, apesar de me ter acontecido isto, continuo a valorizar as minhas raízes de afrodescendente e indígena. Aprendi a transformar estas situações em algo positivo”, confessa a mulher que conta com profissões como jornalista, relações públicas e técnica de enfermagem no currículo, além de se dedicar à escrita.
“Sabia que não ia ser fácil. Não era nenhuma criança, tinha uns 25-26 anos. Já era uma mulher. Esperava algo neste sentido, mas não uma coisa tão drástica”, diz, considerando que viveu um “cárcere semidomiciliar” do qual, tal como os restantes colegas, só saía aos domingos. Deste modo, apostou em Morte às Vassouras – “a vassoura foi o meu algoz, tinha de andar sempre com ela para não parecer uma hóspede e costumo dizer que a troquei pela caneta” –, o seu primeiro livro.
Regressou ao Brasil e conseguiu que o mesmo fosse publicado, em 2002 – o ano em que esteve nove meses na casa da família da elite portuguesa –, pela Editora Kazua, contando com a ajuda do amigo Thomas, um alemão que havia sido uma das primeiras pessoas a ler os seus textos muitos anos antes. “A situação foi horrível, amenizo-a no livro, mas sou muito grata a Portugal porque me abriu as portas para a literatura. Graças a essa experiência empírica, consegui me descobrir como escritora. Não quero morar mais na Europa, mas quero viajar e conhecer outros países”.
As mulheres são aquelas que mais sofrem “A xenofobia tem aumentado, principalmente, contra as mulheres, algo que no passado diminuiu. Agora, está a aumentar e não perceciono isto apenas através daquilo que chega até mim, mas sim porque a gente anda na rua e vê aquilo que acontece”, assegura Ricardo Amaral Pessoa, Presidente da Associação Brasileira de Portugal (ABP). “Existe uma exploração dos brasileiros que estão em Portugal sem documentos. O maior problema é que são chamados para trabalhar, acabam por ficar no chamado período de experiência em determinadas empresas. Finda uma semana ou duas, chega até um mês, o patrão diz que afinal não vai ficar com a pessoa e não paga”.
“Um dos grandes problemas que temos tido é exatamente este. Evidentemente que tem acontecido, em determinados órgãos públicos, lamentavelmente, ainda continua a haver aquela forma ríspida de tratar os brasileiros. E o que mais estranho, não falo por mim porque vivo cá há mais de 30 anos, é que acham que têm o direito de maltratar quem está mais desfavorecido economicamente. Por exemplo, nos lares, isto é terrível. Até obrigam a fazer horas que não estavam previamente definidas. Horas e tarefas. E, de repente, a coordenação, a direção, manda embora e não paga”, conta o dirigente e empresário que acrescenta que, muitas das vezes, chegam-lhe queixas em forma de “desabafo, somente isso”, porque os queixosos têm receio de recorrer às autoridades.
“Têm medo de ser prejudicadas por ainda não terem documentos. Eu chamo isto de crime, trabalho escravo. Quando chega no final da quinzena ou do mês, não recebem nada. Tem sempre desculpas. E aí chamam outra para ocupar o lugar. Isto é complicado”, diz, indo ao encontro da perspetiva de Julia Cavalcante, de 24 anos, licenciada em Publicidade e Marketing e mestranda em Data Driven Marketing.
“Eu vim para cá em 2014 e, desde o princípio, era bem percetível a diferença de tratamento. Apesar de na escola, diferente da maioria dos brasileiros, não ter tido problemas por falar ‘brasileiro’, na rua era outra história. Já fui chamada de macaca e bastava ouvirem o meu sotaque para dizerem que era mais uma puta brasileira”, lastima a universitária, confessando que já foi a entrevistas de emprego onde ouviu “que devia ser um engano porque não contratavam gente do Brasil”.
“E os senhorios recusaram arrendar quarto porque sou brasileira. Geralmente, fico calada e ignoro. Falando com pessoas que estão aqui há mais tempo, eu percebo que o que mudou desde 2017 não é que a xenofobia aumentou: é que o contexto atual, de movimentos sociais e redes sociais mesmo, nos ajudou a ter mais coragem de falar”, revela a jovem, reconhecendo que, hoje em dia, “as pessoas são menos agressivas do que eram antes (até porque já não é propriamente aceite estar a chamar as mulheres de puta na rua)”. “No entanto, ainda é comum ouvir que viemos roubar empregos e maridos, questionamentos sobre nossa inteligência/competência, que não falamos português, mas brasileiro”, narra.
“Ao estudar o processo de imigração de mulheres brasileiras para Portugal, Silva (2013) concluiu que as categorias de trabalho, precarização laboral, segregação social e marginalização constituem palavras-chave para compreender esse fenômeno. Em que pese o fato de o trabalho figurar como um dos motivadores centrais para o processo de migração e ponto principal de estruturação da vida particular e social dessas mulheres, deve-se considerar que a situação de precariedade laboral contribui para uma inserção social frágil, marcada por segregação, exploração e estigmatização”, lê-se em ‘Mulheres brasileiras vivendo em Portugal: trabalho e qualidade de vida”, artigo científico publicado em 2019.
Embora seja este o panorama mais visível, Ricardo Amaral Pessoa alerta para os perigos a que os imigrantes do género masculino estão igualmente sujeitos. “Para os homens, o problema é o mesmo, mas em períodos mais curtos. No espaço de 10, 15 dias dizem que vão fazer um estágio não remunerado e eles aceitam porque estão na perspetiva de ficar. Chegam no fim e dizem que não deu certo. E eles gastaram o pouco que tinham nos transportes, na marmita… A forma de discriminação está muito pior do que aquela que acontecia antigamente. ‘Brasileiro, vai para o teu país’. Eu sou dessa época. Era muito mais suave ouvir isso do que as pessoas trabalharem sem receberem nada”.
“Como Presidente da ABP, se for ter com os empregadores, eu não peço nada: eu exijo. Portugal é um país maravilhoso. Adoro o Brasil, é fabuloso, mas já tenho uma vida aqui. A comunidade brasileira mais fragilizada aprendeu a confiar em nós e tem nos procurado de Norte a Sul”, finaliza o dirigente da associação que “coloca à disposição dos sócios um gabinete de Apoio Jurídico, um Gabinete de Apoio Psicológico” e “encontra-se também em desenvolvimento a formação de uma Biblioteca/Centro de Documentação para pesquisa e estudos”.