Enquanto António Guterres visitava as cidades arruinadas de Bucha e Borodyanka, nos arredores de Kiev, esta quinta-feira, após o seu encontro com Vladimir Putin, as forças russas intensificavam os bombardeamentos no leste. Sobretudo na região de Donetsk e nos arredores de Kharkiv, declarou o Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas, que anunciou terem repelido seis ataques nesse mesmo dia, alertando que a ofensiva russa contra o Donbass está a ganhar ímpeto.
Ainda que longe daquela que agora é a frente mais sangrenta do conflito, o secretário-geral das Nações Unidas teve um vislumbre do terror que vivem os ucranianos. Quando reunia com Volodymyr Zelensky, houve duas explosões no centro de Kiev, próximo do palácio presidencial, avançou a Reuters. As forças russas dispararam dois mísseis de cruzeiro contra a capital, denunciou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba. “Através deste hediondo ato de barbaridade, a Rússia demonstra mais uma vez a sua atitude quanto à Ucrânia, à Ucrânia, à Europa e ao mundo”, tweetou.
Não é bom augúrio para as esperanças de Guterres quanto a um acordo de paz. O próprio secretário-geral da ONU, junto do Presidente da Ucrânia, admitiu que o Conselho de Segurança, do qual a Rússia faz parte, “falhou em fazer tudo o que estava ao seu alcance para prevenir e acabar com esta guerra”.
Agora Guterres tenta compensar, após todas as críticas de que tem sido alvo. Não só a ONU não conseguiu passar qualquer resolução a condenar a invasão, dado a Rússia ter direito de veto, como tem tido dificuldades em fornecer ajuda humanitária à Ucrânia. A organização encabeçada por Guterres nem sequer um papel como mediador tem conseguido manter, acabando posta de lado pelo regime turco de Recep Tayyip Erdogan, anfitrião das negociações em Istambul.
Massacres “A guerra no século XXI é um absurdo”, lamentou o secretário-geral das Nações Unidas na manhã de quinta-feira, falando à imprensa perante os destroços de um bloco de apartamentos em Borodyanka.
Esta pequena cidade, onde costumavam viver umas 13 mil pessoas, tornara-se um dos eixos cruciais das tentativas russas de cercar Kiev. Foi devastada por mísseis, alguns carregando as temidas bombas de fragmentação. Eram disparados de noite, quando muitos civis estavam em casa, denunciara Iryna Venediktova, procuradora-geral da Ucrânia, ainda antes das tropas russos serem forçada a retirar de Borodyanka, após uma das suas colunas blindadas ser aqui emboscada com artilharia.
“Quando eu vejo estes edifícios destruídos, imagino a minha família numa destas casas, agora destruídas e escurecidas. Vejo as minhas netas a correr em pânico”, continuou Guterres, perante as ruínas. Se a descoberta do massacre em Bucha chocou o mundo, as autoridades ucranianas temem que a escala da atrocidade em Borodyanka tenha sido ainda maior, acusando os russos de deixar civis enterrados vivos entre os escombros, abatendo a tiro aqueles que conseguiam escapar.
Já em Bucha, o secretário-geral da ONU saudou os esforços para fazer justiça, tanto pelo Tribunal Penal Internacional, encarregue de investigar crimes de guerra, como por parte das autoridades ucranianas. Nesse mesmo dia, a procuradora-geral da Ucrânia anunciou ter apresentado acusações formais contra dez militares russos, integrantes da 64.ª brigada motorizada, que “durante a ocupação de Bucha levaram como prisioneiros civis desarmados, fizeram-nos passar e torturaram-nos”, escreveu Venediktova no Facebook.
“Quando visitamos este sítio horrendo, faz-me sentir o quão importante é uma investigação detalhada e responsabilização”, declarou Guterres perante uma vala comum, apelando a que a Federação Russa colabore com a investigação. Não que haja grandes esperanças disso, dado que o Kremlin não só declarou que as imagens do massacre de Bucha eram falsas, como ainda condecorou a 64.ª brigada motorizada, dando-lhe o estatuto de guarda. A ideia que ficou, para muitos observadores, foi que as ordens para brutalizar a população ucraniana vieram de cima.
“Mas quando falamos de crimes de guerra, não podemos esquecer que o pior dos crimes é a guerra em si mesma”, frisou Guterres, numa crítica ao Presidente russo.
Batalha campal Do outro lado da Ucrânia, forças russas continuam lentamente a avançar. Na véspera da chegada de Guterres tomaram aldeias a leste e a sul de Izyum, a sua rampa de lançamento no Donbass. O Kremlin tem apostado numa guerra de atrito, após o falhanço das suas manobras em profundidade a norte de Kiev, e agora tenta alcançar Sloviansk, próximo de Kramatorsk, um ponto crucial de abastecimento para as tropas ucranianas que defendem a linha da frente contra os separatistas do Donbass.
O futuro da Ucrânia pode ser decidido nas trincheiras que rodeiam Sloviansk. Os defensores não terão a vida facilitada. “Há aqui muita gente que apoia os russos, que são separatistas. Sloviansk é conhecida por ser predominantemente separatista”, admitiu Ruzlan, que comanda de uma unidade de voluntários das Forças de Defesa Territoriais. “Esta gente já revelou todas as posições do exército aos russos”, queixou-se o oficial a uma repórter da RFI.
A própria natureza desta nova fase do conflito, estando as forças russas ainda a tentar abrir caminho até Sloviansk, com uma frente estática, pode tornar difícil manter a moral das tropas, explicou Ruslan, que antes da guerra trabalhava como fotógrafo. “Nós viemos para lutar, e de momento estamos apenas a patrulhar a cidade”.
Ajuda militar Tanto Moscovo como Kiev se preparam para um conflito prolongado e a Casa Branca parece partilhar desse prognóstico. Aliás, esta quinta-feira Joe Biden até pediu ao Congresso que aprove um pacote de ajuda militar, económica e humanitária à Ucrânia, no valor de 33 mil milhões de dólares (mais de 30 mil milhões de euros).
Em breve as forças ucranianas, que já souberam usar com uma eficácia surpreendente os lança-mísseis de ombro fornecidos pela NATO, deverão receber ainda mais armamento. O secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, que fez uma visita surpresa a Kiev pouco antes de Guterres, voltou com a lista de compras dos ucranianos.
Kiev pediu obuses M777 howitzer, de maneira a responder aos bombardeamentos de longo alcance russos nas planícies do Donbass, avançou o Politico. Assim como artilharia autopropelida M109 Paladin, cuja mobilidade se enquadra nas táticas que os ucranianos têm usado nesta região, mudando a sua artilharia constantemente de posição, para não serem esmagados pelo poder de fogo superior do Kremlin.