por João Cerqueira
A viagem durou mais de quatro horas. Aquele velho barco de pesca atafulhado com mais de cem pessoas era lento. Na luta contra as correntes, o motor pouco mais podia do que roncar. Qualquer onda o fazia estremecer, como se a água lhe causasse pavor. Entalada entre dois homens e uma mulher com um bebé ao colo, não me podia mexer. Agarrei o meu amuleto e fechei os olhos. Algumas pessoas vomitaram dentro do barco, outras urinaram e defecaram de qualquer maneira. Se não estivéssemos no convés, açoitados pelo vento, o cheiro tornar-se-ia insuportável. Mas ninguém falava. Fosse por estarmos a sonhar com a nova vida na Europa, fosse pelo medo de morrermos afogados, ninguém falava. Só os demónios do mar tinham voz.
Uma lua radiante dominava o céu; poucas estrelas se atreviam a cintilar.
De repente, avistámos luzes e soubemos que tínhamos chegado. A Europa brilhava para nós. A Europa era o nosso céu. E os anjos vieram sob a forma de gaivotas. Pouco depois, puseram-nos em barcos de borracha e descarregaram-nos numa praia. Tivemos de saltar para a água gelada e andar até à areia. Várias pessoas foram derrubadas pelas ondas. A mulher que trazia o filho pô-lo em cima da cabeça para ele não se afogar. Os primeiros a pisar a Europa começaram a gritar. Alguns corriam, outros abraçavam-se e outros ainda rezavam de joelhos. Eu, quando finalmente cheguei a terra, deixei-me cair exausta. A areia entrou-me na boca.
Era este o sabor da Europa?
Desde que vejo televisão que sonho com a Europa. A Europa era beleza, felicidade e abundância. A Europa era Paris, Londres e Roma. A Torre Eiffel, o palácio da rainha de Inglaterra e o Vaticano. A Europa era o Cristiano Ronaldo, o príncipe William e tantos outros homens bonitos. Na Europa não havia guerras, nem fome, nem doenças. Na Europa não batiam nas mulheres, nem cortavam as meninas, nem obrigavam as crianças a trabalhar. Na Europa as pessoas eram boas. A Europa era onde eu queria estar.
Quando o meu pai morreu começaram os problemas. Eu tinha dezassete anos e era a mais velha das irmãs. A minha mãe disse-me que eu tinha de arranjar um marido. Havia um velho que lhe ofereceu dinheiro para casar comigo, mas eu recusei-me. Ela bateu-me com um pau, ele bateu-me com um chicote, mas eu continuei a recusar. Eu queria ir para a Europa. Eu disse-lhe que preferia morrer a viver com aquele homem e ela acabou por desistir. Disse-me que eu desonrara a família, que era uma maldita e que um dia os demónios viriam buscar-me.
Então pedi-lhe para me deixar ir para a Europa.
Um mês depois ela apareceu com outro homem. Este era mais novo, estava bem vestido, tinha uma corrente de ouro ao pescoço e cheirava a perfume. Até nem me importaria de casar com ele se não fosse a Europa. O homem aproximou-se de mim e mandou-me abrir a boca. Depois andou à minha volta a observar-me. Apalpou-me e eu comecei a rir. Por fim, disse à minha mãe que eu não era muito alta, nem muito bonita, mas que servia na mesma. E foi-se embora. A minha mãe explicou-me então que eu tinha sido aprovada e que já estava tudo tratado. Partiria no dia seguinte para a cidade e depois caminharia durante uns dias até chegar ao mar. Foi o dia mais feliz da minha vida. Fartei-me de brincar com as minhas irmãs. Durante a noite nem dormi, tantos eram os planos que fazia para viver na Europa. Quando chegou a hora da partida pensei que a minha mãe ficaria contente por eu ir embora, por se ver livre de mim, a rapariga maldita, mas ela abraçou-me e começou a chorar. Depois, pôs-me um amuleto ao pescoço e voltou-me as costas.
Agora que estou na Europa, sentada na praia à espera que me venham buscar, é nisto que penso. As memórias sucedem-se como ondas. Já não penso no Cristiano Ronaldo ou no príncipe William. Só tenho saudades da minha mãe e das minhas irmãs. Peço aos anjos que esvoaçam à minha volta que me ajudem a ganhar dinheiro para as trazer para cá. E com o dedo desenho na areia uma casa onde um dia iremos morar.
Estou a ver uns homens a caminhar na nossa direção. São todos brancos, embora não tão bonitos como eu esperava. Apontam-nos lanternas e trazem um cão que nos ladra. Um deles deve ser o chefe pois não para de dar ordens. Contam-nos e começam a separar-nos em grupos. No meu grupo só há mulheres novas. Doze. Parece-me normal, pois antes da viagem o passador tinha-nos garantido que iríamos trabalhar em lojas e restaurantes. Agora tiram-nos os documentos. Não sei por que o fazem, mas a minha mãe disse-me para nunca discutir com quem manda. E assim saímos da praia em direção a duas carrinhas. Ninguém nos diz nada, nem nós nos atrevemos a fazer perguntas. Tínhamos chegado à Europa. Que mais podemos desejar? Trememos de frio e temos fome. Mas que importa, se tínhamos chegado à Europa?
Surge um anel luminoso à volta da lua e as estrelas ficam do lado de fora.
As carrinhas partem e estamos todas felizes. Algumas raparigas cantam. Eu bato palmas. Sinto-me tão contente que também desejo ter um bebé. Um bebé europeu que não tenha de fugir em cima da cabeça da mãe. Porém, descubro que começamos a afastar-nos das luzes que havíamos visto no barco. E, por fim, deixamos de as ver. Afinal, não vamos para uma grande cidade. Não vamos para Paris, Londres ou Roma. Vamos para algum sítio que não incluíra nos meus planos. Mas na Europa deve haver lojas e restaurantes em toda a parte. Sim. Na Europa toda a gente é rica. Agora, saímos da estrada e entramos num caminho de terra. A carrinha começa a abanar como um barco. O meu amuleto solta-se do pescoço. Já ninguém canta. Uma das raparigas está a fazer perguntas. Quer saber para onde vamos. Ninguém lhe responde. Ela levanta-se e barafusta. Um dos homens volta-se para trás e dá-lhe uma bofetada. Ela cai ao chão e começa a chorar.
Fui enganada, não foi para a Europa que me levaram. Isto é uma terra de demónios. A minha mãe bem me avisara que eles viriam buscar-me. Só não imaginava que pudessem assumir a forma de homens brancos. Não sei o que irá acontecer, mas pelo menos não serei forçada a deitar-me com velhos.