por Fátima Bonifácio
O ‘Estado Social’ é talvez a maior contribuição civilizacional que a Europa contemporânea lega para o futuro. Quem primeiro o esboçou foi Otto von Bismark, nos finais do século XIX, um político alemão insuspeito de progressismo mas nem por isso menos sensível à pobreza desvalida. Na sua versão contemporânea, foi ‘inventado’ no rescaldo da II Grande Guerra Mundial, graças à colaboração de Alcide de Gasperi, primeiro ministro italiano, e Konrad Adenauer, chanceler alemão. Ambos eram democrata-cristãos. Homens de direita, portanto. Durante muito tempo, constituiu para mim um mistério como foi possível um tal projecto, hoje em dia uma realidade, ter sido apropriado pela esquerda, que conseguiu a proeza de levantar dúvidas quanto à fidelidade da direita clássica aos compromissos do que também podemos chamar um ‘Estado-Providência’ ou ‘Estado de Bem-estar Social’.
Com o tempo e a reflexão, porém, acabei por perceber que o Estado Social é uma forma de refrear o liberalismo económico que, por si só, não se disporia a preocupar-se com a sorte dos desvalidos. Mas foi justamente a compaixão que levou os democratas-cristãos a engendrar um Estado que contivesse os excessos do liberalismo económico irrestrito, regulando até certo ponto a vida económica e estabelecendo regras protectoras de quem trabalha, de quem adoece, de quem se reforma ou de quem cai no desemprego. Não me parece que tenham sido estas questões que moveram a esquerda, apesar da sua apregoada preocupação com os ‘trabalhadores’, a apropriar-se da ideia, do projecto do Estado Social. Estou convencida que a principal motivação residiu na sua aversão ao capitalismo, no seu inveterado anti-liberalismo e na sua paixão estatista. Uma vez que o comunismo puro e duro da União Soviética não se revelou exequível na Europa, então a social-democracia podia servir como um pobre Ersatz, mas que o tempo e o progresso fariam avançar até à sua plenitude propriamente socialista. Entre nós, ainda actualmente o Partido Comunista alimenta a serôdia e patética ilusão de que um dia, num futuro incerto mas garantido, o capitalismo será destruído e o comunismo novamente entronizado.
É bom compreender que, hoje em dia, a esquerda – principalmente a mais extremada – nunca se sente saciada de estatismo, desvirtuando as intenções dos pais-fundadores da social-democracia. Social-democracia, sim, porque o Estado Social e a Democracia, depois da II Guerra, nasceram geminados, e assim permanecem felizmente até hoje. Não conheço outro regime que me ofereça a liberdade e, em simultâneo, me proporcione o conforto de viver numa sociedade decente, sem misérias escandalosas. Venho do tempo em que o povo andava descalço na rua; é reconfortante verificar que toda a gente tem hoje sapatos. O Estado Social funciona como um redistribuidor de riqueza, uma função necessária desde que não se exceda até ao ponto de impedir a criação de riqueza pela iniciativa privada ou de sugar através dos impostos os nossos salários e reformas. Portugal não anda longe deste limite. Limite que não é definido pela sensibilidade pessoal de cada um, mas objectivamente pelas contas do Estado. Há vinte anos que Portugal não cresce pelo motivo de que os altos impostos desencorajam o empreendedorismo, único meio de criar emprego produtivo e riqueza. Redistribuir gera consumidores, não gera produtores.
Vivemos, no século XXI, em sociedades extremamente complexas, não só porque a globalização e o estonteante progresso tecnológico que lhe está associado alterou o regime dos elevadores sociais, como porque as migrações perturbaram a antiga homogeneidade étnica, cultural e social, colocando novos desafios de integração aos governos. Resolver este tipo de problemas custa caro e, apesar das avultadíssimas verbas que se despendem, são ainda demasiados os que ficam de fora. Estes, os que ficam de fora, são auxiliados com subsídios precários que o Estado Social lhes concede (ou vai concedendo). Não por acaso se fala, pejorativamente, em subsídio-dependência.
Tocamos aqui num efeito perverso da generosidade do Estado Social, que vive sob o fogo dos que o acham injusto por premiar a preguiça. Durante a campanha eleitoral francesa para a Presidência da República, vi na televisão várias pessoas indignadas por lhes ser sonegada uma parte do seu rendimento para sustentar gente alegadamente preguiçosa que não quer trabalhar (os ‘fainéants’). Eis um tema que a extrema-direita de uma Marine Le Pen podia perfeitamente explorar. Com efeito, este tipo de ressentimentos acirra o conflito social. É verdade que existem excessos, que há pessoas especialistas em espremer a bolsa do Estado e que deveria haver maior rigor e supervisão. Mas estes efeitos perversos não invalidam a bondade das medidas. A grande maioria de carentes não sobreviveria sem a ajuda pública. Deverão os justos pagar pelo pecador?
Não, não devem. Mas também nós não devemos deixar-nos chantagear pela esquerda, que nunca se cansa de apontar as falhas, as faltas e as deficiências da social-democracia; nunca se cansa de reivindicar mais e mais impostos alegadamente destinados a aliviar a vida dos mais desfavorecidos e… punir os ricos. «Sem os ricos», disse em tempos Margaret Thatcher, «não haverá esperança para os pobres». Esta citação irritará a esquerda até ao rubro, pois pensa exactamente o contrário – que há pobres só porque há ricos! Mas então ela que se confesse, e que admita honestamente que usa o ideal socialista apenas para combater o capitalismo per se, e já não, dada a falência do comunismo, para lhe contrapor um regime perfeito de facto existente.
A social-democracia, um produto do capitalismo, vive sob o fogo cruzado dos que a consideram um modo de esbulhar os que ganham a sua vida com trabalho árduo e os que a criticam por não derramar riqueza e prosperidade gerais.