por Afonso de Melo, em Nova Delhi
NOVA DELHI – São cinco e meia da manhã. Acho que se estender o braço para o alto consigo agarrar um pedaço deste céu baço que caiu nos sobre a cabeça, mistura de poluição com nevoeiro e fumo dos incêndios que assolam a Índia e esta região, do Madhia Pradesh ao Uttar Pradesh e ao Rajastão. Parece que tudo começou no Paquistão, na zona de Mohenjo-daro, esse lugar milenar que vem dos primórdios de todas as civilizações, o Monte dos Mortos, onde estive uma vez, há mais de trinta anos. Por isso, a temperatura trepa com a velocidade de uma lagartixa pelas paredes dos termómetros. Estão 31 graus, precisamente à sombra porque esta é, agora, a cidade de todas as sombras. Prometem 43 ou 44 para mais longo, quando o sol estiver a pino e não passar de um disco branco, tapado e triste.
Nunca gostei muito de Nova Delhi. Falta-lhe o charme de Bombaim e a elegância ainda britânica de Calcutá. É uma mistura de cidades construída em redor da velha cidade de Delhi. Como Ghaziabad, que foi Ghaziuddinnagar, a menina dos olhos do grão-vizir Ghazi-ud-Din que serviu o imperador mongol Mohammad-Sha, sempre demasiado apaixonado pela música e pela poesia para poder administrar decentemente o poder.
O som das buzinas vem crescendo enquanto caminho pelas ruas – «Horn Please» – sem muito para fazer se não deixar passar tempo enquanto vagueio. Táxis, rickshaws, automóveis, autocarros, peões, movem-se dentro de um fascinante caos de círculos universais que se cruzam uns com os outros mas não chocam uns com os outros. Há alguém que grita, mas o grito derrete-se numa cacofonia de ruídos mastigados. Uma mão magra estende-se na minha direcção suplicando por alguns paisa, agora que a rupia subiu tanto no valor do dinheiro que os paisa praticamente não existem. Rupya em sânscrito significava prata. Paisa veio de padamsah, que era um quarto ou a quarta parte dessa prata. No fim do braço da mão que se me oferece há uma mulher velha como a noite dos tempos e com os olhos baços como o céu de Delhi. Cegos.
Sikhs orgulhosos dos seus turbantes coloridos. Um rato enorme ziguezagueia por entre um monte de lixo depositado no passeio. Respeito pelo rato: ele é o meio de transporte de Ganesh, o deus da cabeça de elefante que traz felicidade. Cheira a podre e a queimado, mas também a fruta e a açúcar. A pituitária retoma o seu trabalho de investigação mecânica equanto me desvio de um tuck-tuck destrambelhado que, por pouco, não bate nas traseiras de um camião que transporta troncos enormes de madeira. Um rapaz insiste para que compre uma cana-de-açúcar que ele triturará num aparelho simplório que tira a goma das suas fibras, tal como fazíamos em meninos, no meu quintal em Santa Cruz, na Madeira, o ponto mais alto da minha ternura.
O céu cinzento tornou-se um bloco de cimento. Tão grosso, tão bruto que me sopesa nos ombros e me faz andar curvado como o homenzinho à minha frente na sua impecavelmente engomada salwar-kameez branca como neve. Não, não consigo agarrar o céu. Não, não consigo ssequer arranhá-lo. Não, não consigo sequer vê-lo. Paenas esta imitação de céu. A cidade vai continuar presa a ele nestes dias em que o calor coze as pessoas por dentro e por fora, avisando que lá para o norte, há florestas que ardem sem cessar.
Um tempo…
Não fosse o tempo tão escasso, talvez fosse num destes rickhaws até às fímbrias de frescura de Buddah Jayanti Park, sentar-me nas raízes de uma banyan tree, as figueiras gigantes sob cujas folhas o supremo Krishna fazia uma pausa no seu trabalho de pôr toda a Humanidade a funcionar de acordo com a sua inimitável sabedoria. Ou até os mausoléus de Nizzamudin, onde há espaço entre os homens e onde ainda sopra a voz do poeta Amir Khusro: «Mataste-me dentro de ti com apenas um olhar…» Também há um eco de amor sob o céu de betão. Na Índia, o tempo fica para além do tempo. Talvez porque todos eles são muito antigos e nós demasiado modernos. Podemos estar aí há quase novecentos anos, mas eles estão aqui muito, muito antes disso. Nunca perguntem a um indiano algo cuja resposta obrigue a dizer que não. Porque, logo em seguida, ele abanará a cabeça, num jeito especial, que é uma negação a querer dizer que sim. Eu que estive aqui mais de quarenta vezes, continuo a surpreender-me todos os dias em que regresso. E fico com vontade de ficar. Para sempre. Tento deixar as para trás as saudades do que deixou de existir. E repetir como outro poeta, Ahmed Faiz: «Pergunto-me por esse país cujos sinais hoje esqueço/Não me lembro nem da sua geografia nem da sua história/E se o visitasse na minha memória/Seria como faz o antigo amante/Ao fim de muitos anos, por uma noite/Sem as inquietações da paixão/Sem medo de ceder à nostalgia/Com a minha idade só por cortesia/Se visita ainda o coração».