Por Nuno Cerejeira Namora, advogado especialista em Direito do Trabalho
Pouco antes da sua morte, em 1961, V. O. Key Jr., um politólogo norte-americano, publicou um ensaio que intitulou, em livre tradução, A Opinião Pública e o Declínio da Democracia. O interesse desse texto decorre essencialmente de duas circunstâncias bem distintas. A primeira, mais prosaica, resulta do facto de, a propósito do declínio das nações, o autor mencionar expressamente, e logo como exemplo mor, Portugal. A segunda, de maior relevância, prende-se com a análise feita a propósito da alegada influência da opinião pública na ação dos governos.
Comecemos, então, pela primeira razão, donde bastará a tradução deste trecho: «Qualquer época conhece os seus melancólicos profetas que preveem a decadência da ordem política graças a processos irreversíveis que eles identificam com precisão e segurança Nós talvez não prestemos a devida honra a estes oráculos cuja visão sensível antecipa um futuro negro e hostil. Alguns deles ignoramos porque são lunáticos certificados. Outros tantos simplesmente porque confundem a ansiedade pessoal suscitada por qualquer nova política pública com uma ameaça à ordem social estabelecida. Não obstante, a verdade desagradável é que esses profetas acabam por, eventualmente, ter razão. Até podem estar errados quanto ao timing. Até podem estar completamente enganados no diagnóstico que fazem das razões do declínio nacional. Porém, mais cedo ou mais tarde, estarão certos. As nações, os impérios e as civilizações, até onde alcança a história, incandescem em breves momentos de glória apenas para declinarem no laxismo, na fraqueza, na pobreza. Basta recordar que Portugal, não há muito tempo, era um dos grandes poderes do globo».
Quanto à segunda razão, e contrariamente à opinião generalizada, novamente evidente a propósito das comemorações de mais um 25 de Abril, convém lembrar que a democracia não é um dado adquirido, antes surgindo, na história humana, como um apontamento temporal, que nem sequer se estende, em todos os seus pressupostos essenciais, à maioria da população do planeta. A regra é e continua a ser, como a invasão da Ucrânia penosamente nos veio recordar, o jugo, a tirania e a opressão.
Este poderia ser mais um motivo (talvez o principal) para preservarmos o sistema democrático, ainda que isso implique aceitar todas as suas contradições, fragilidades e defeitos. Uma dessas fragilidades encontra-se, para muitos, na opinião pública, aqui entendida como o diálogo das massas sobre o bem comum. Porque os governantes e, no geral, os políticos se deixam guiar e condicionam a sua ação pela opinião pública, há quem queira extrair daí uma dinâmica que levará inevitavelmente à autodestruição democrática: se os governos são responsivos à opinião pública, eles estão destinados a adotar medidas que, em última análise, colocarão em causa as próprias fundações do sistema. No fundo, as proposições desta tese resumem-se assim: a ligação entre a ação política e a opinião pública é tão íntima que esta, em grande medida, determina aquela; a opinião pública exige dos governos políticas erradas, ora porque as pessoas hesitam perante crises, ora porque a maioria dos indivíduos apenas consegue analisar problemas a partir da sua experiência pessoal, ora porque a opinião pública pode ser gananciosa, ambiciosa, ou, simplesmente, insana.
Aquilo que V. O. Key Jr. veio afirmar, já nos anos 60, é o erro em que esta tese incorre. Na verdade, o autor explica que aquilo que nós creditamos como sendo o diálogo de massas que constitui a opinião pública é, antes, dominado por um grupo infinitamente mais restrito de pessoas, que definem as narrativas dominantes e as posições que sobre elas se colocam, acabando as massas, quando o fazem, por aderir a essas posições preestabelecidas. Por várias razões, mas sobretudo por desinteresse ou falta de atenção da esmagadora maioria das pessoas, são os políticos profissionais ou amadores, os ativistas, os influencers políticos, os jornalistas, os mestres das agências de comunicação e, de uma forma geral, todos aqueles interessados na gestão da res publica, que compõem a ‘opinião pública’. V. O. Key Jr. designou este grupo de pessoas como a ‘aristocracia’ política, mas hoje talvez as identifiquemos mais facilmente como as ‘elites’.
Atendendo à (aparente) importância da ‘aristocracia’ política ou ‘elites’ na condução da vida pública, capaz de a condicionar e determinar, faz falta em Portugal um estudo sociológico deste grupo. Estou em crer que teríamos muitas surpresas.