PANJIM – Para o Estado Novo e para o seu grande adventista, António Oliveira Salazar, a perda da Índia Portuguesa foi humilhante e ponto final. Nem vale a pena perder muito tempo com a questão de Libertação ou Invasão, invocadas por cada uma das partes, mais vale resolver esse assunto como o Guimarães Rosa: «Pãos ou pães é uma questão de opiniães». O facto é que, há pouco menos de 60 anos, a paz de Lisboa, capital do Império, estava definitivamente abalada. De repente, no dia 15 de Dezembro de 1961, chegavam os primeiros retornados. Ponte aérea, chamavam-lhe os jornais. Um voo entre o aeroporto de Dabolim, nos arredores de Panjim, e a Portela de Sacavém, com escala em Karachi, no Paquistão que, de repente – veja-se como é a política – passava a ser um país boca com orelha da diplomacia portuguesa. «O espectáculo do desembarque não deixava de emocionar», escrevia um repórter nitidamente afetado com os acontecimentos. Sessenta adultos, na sua maioria mulheres (e alguns doentes) e sessenta e três crianças (das quais 23 ainda de colo) regressavam à pátria numa altura que a guerra parecia inevitável. Mas havia uma réstia de esperança. Alguns desabafavam à chegada: «Voltaremos mal a situação acalme». Mas que situação, afinal? Parece que ninguém sabia muito sobre o assunto. A não ser o primeiro-ministro da União Indiana, Jawaharlal Nehru, o Pandita. Um pândita, ou pandita, um termo que vem do hindi, pundit, é um estudioso, um sábio. Para a malta da minha geração que, como eu, nas escola primária, em Benavente, ainda tinha mapas dependurados na parede com as colónias portuguesas em todos os continentes pintadas a cor-de-rosa, foi preciso decorar que o Estado Português da Índia era composto pelo territórios de Goa, Damão e Diu, e pelos enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli. Era batota, claro! Os professores sabiam de ginjeira que nada daquilo (ou disto, já que por aqui ando) era governado por portugueses e já tinha sido incorporado na nova Índia, independente desde a meia-noite do dia 15 de Agosto de 1947.
Um colega de classe, o Moriti (pelo nome devia estar bem dentro do assunto), costuma insultar-nos a todos, nos jogos de futebol do recreio, de pandita para cima. «És um pandita!», gritava. E os outros, sem saberem que diacho seria um pandita, cabisbaixos por não poderem responder-lhe à letra. Mas o Moriti (assim, que me lembre, eram um ror de irmãos), voltava à carga: «És um chatiágrá! Desaparece chátiágrá!!!». E a rapaziada cada vez mais muda, como está bem de ver.
Vendo bem, os satyagrahis, ou satyagrahas até formavam um grupo porreiro para a época, e estamos a falar de um tempo de descolonizações que tiveram tudo e mais alguma coisa de sanguinário. Seguiam os mandamentos pacíficos de Gandhi, o ahimsa, e precisamente no dia 15 de Agosto de 1955, tentaram a primeira invasão pacífica de Goa, tal e qual como tinham caminhado ao lado do Mahatma durante 24 dias, em Março e Abril de 1930, para colherem uma mão cheia de água de mar e do seu sal na Sal Satyagraha. Incapazes de perceberem o movimento, aterrorizados com a simples expressão de invasão, os soldados portugueses instalados no território limitaram-se a abrir fogo sobre os homens que se enfileiravam tranquilamente na direção de Panjim. Uma merda! 1700 satyagrahas foram recebidos a tiro em Goa, 1250 em Damão e 81 em Diu. Resultado catastrófico de 122 mortos e 225 feridos no total. Algo que leva a população indiana em geral a ganhar antipatia pelos portugueses. E, em particular, o governo da Índia a cortar relações diplomáticas com Portugal. Os problemas vinham aí a galope.
Isolamento dos enclaves
Dadrá e Nagar-Haveli – quem fez a tropa em Mafra nunca esquecerá estes nomes e bem sabemos porquê. Já quanto aos lugares em si, aprendemos à custa da velha mestra palmatória, que era enclaves. Isto é: territórios com distinções políticas, sociais e/ou culturais cujas fronteiras geográficas ficam inteiramente dentro dos limites de um outro território. Dadrá em Mafra era o corredor gigantesco onde nos púnhamos em sentido para as primeiras ordens do dia, a começar pela formatura para o pequeno-almoço. Na Índia, é apenas uma pequena terriola do Estado do Gujarat com cerca de 3400 casas. Ninguém se lembraria de andar por este mundo e pelo outro a reclamar a posse de tão inóspito lugar, não fossem os portugueses muito dados a portuguesices. Nagar-Haveli, separada de Dadrá por uma estreita faixa de de terreno indiano e um pedaço do rio Damandanga, era mais suscetível de aborrecimentos. Além de fazer fronteira com o Gujarat, tem igualmente fronteira com o Estado do Maharasta, o economicamente poderoso Estado cuja capital é Bombaim (cidade que fizemos o frete de dar de mão beijada aos ingleses aquando do casamento de Catarina Henriqueta de Bragança com Carlos II, um infeliz que acabaria decapitado por ordem de Oliver Cromwell, provocando um hiato na monarquia da Grande Ilha Para lá da Mancha), cobrindo a extensão de 491 quilómetros quadrados e tendo, por sua vez, um outro enclave dentro do seu território pertencente ao Maharastra e chamado Mehdval.
O governo de Nehru percebeu rapidamente que os dois enclaves portugueses estavam em situação extremamente precária. E a primeira decisão que tomou e deixou Salazar com um feitio de amarrar a burra foi o de impedir a livre circulação entre Dadrá e Nagar-Haveli com as outras duas possessões portuguesas mais próximas, Damão e Diu. Basicamente, transformou ambos em duas prisões a céu aberto, pelo para os cidadãos lusitanos, já que os indianos não tinham de se preocupar com isso.
Em 1783, Nagar-Haveli foi cedida aos portugueses como compensação pelo afundamento de um navio português pela marinha do Maharastra. Dois anos mais tarde, em 1785, Portugal decidiu comprar a ninharia de Dadrá e incorporá-la no Estado Português da Índia. Último a fazer parte da ideia lusitana de um mundo onde houvesse um pedaço de terra onde cada português se sentisse em casa. Dadrá viria a ser a primeira colónia a desmembrar-se do Império pela ocupação da União Indiana, em 1954, depois de quase duzentos anos de convivência pacífica entre colonizadores e nativos.
Regressemos aos dias de hoje, aqui em Goa, a mais marcante das pegadas nacionais em território indiano, já que Damão e Diu (que é uma ilha e um pedacinho de terra do outro lado) não têm muito para mostrar que não seja um antigo forte, duas ou três igrejas e, acima de tudo isso, o estatuto de território onde a igreja católica bate o pé à muçulmana e à hindu, ou seja, sítio onde podemos beber álcool à vontadinha e, atenção!, não menosprezem este pormenor, por amor de Deus, que nesta altura não pode ser chamado em vão. Se viajarem por Goa, que não tem mais de 3702 km2, significantemente menor do que o Minho, se isto serve de comparação, não encontrarão muitas pessoas que ainda falem português. E as que encontrarem serão suficientemente velhas para terem feito parte do sistema escolar colonial que fazia da língua portuguesa uma cadeira obrigatória. Para compensar, cada vez mais goeses têm passaporte português desde que, há cerca de vinte anos, um advogado de Lisboa de sobremaneira esperto, levantou a questão que tinha sido transversal à independência de todas as colónias: em 1961, todos os habitantes do Estado Português da Índia tinham direito à nacionalidade portuguesa; ao contrário do que sucedeu com as restantes colónias, ninguém lhes deu a possibilidade de escolha após a libertação: por que motivo um natural de Goa, Damão ou Diu nascido antes desse ano não poderia reclamar a nacionalidade portuguesa que fora sua até aí? E, obtendo a nacionalidade portuguesa, que os impedia de reclamar a mesma nacionalidade para os seus descendentes? O assunto resolveu-se com simplicidade e todos os indianos que eram cidadãos portugueses à altura da invasão indiana lutaram e obtiveram esse direito de serem nossos compatriotas. Sim, sim, na mesa do Anthony’s, à minha volta, agora que chegaram as monções, todos temos passaporte português – e somos oito!
A questão francesa
Com a independência, a União Indiana encarou os territórios portugueses da mesma forma como o fez em relação aos franceses e aos seus Établissements Français dans l’Inde: os enclaves de Pondichéry, Karikal, Yanaon na Costa do Coromandel, Mahé, na Costa do Malabar, e Chandernagor, no Estado de Bengala. Salazar não esteve nem sequer aí para ouvir tamanho disparate, segundo a sua opinião. A defesa que veio a apresentar, e que levou a um longo processo no Tribunal Internacional de Haia, respondeu à tentativa feita a 27 de Fevereiro de 1950 pela União Indiana que apresentou oficialmente em Lisboa a sua reivindicação formal sobre os territórios indianos sob administração portuguesa, pedindo a abertura de negociações com vista a efetuar a respetiva transferência de soberania, tal e qual a fizera e obtivera junto do governo francês. Segundo o historiador Fernando Rosas, a diplomacia nacional tinha uma visão bem distinta da realidade: em nome de imperativos constitucionais e de consciência, isto é, em nome de uma alegada originalidade diferenciadora da presença portuguesa na Índia, Goa não era uma colónia portuguesa, mas sim, em razão das particularidades históricas do empreendimento português no Oriente, uma sociedade que pela mentalidade, conceção de vida e ambiente espiritual constituía um caso distinto do subcontinente indiano – «a transplantação do Ocidente em terras orientais».
A História é a História e não se reescreve mesmo vendo tudo isto a tantos anos de distância. No dia 14 de Dezembro, o Presidente do Conselho envia para o general Manuel António Vassalo e Silva, último Governador de Goa, um telegrama tão sinistro como canalha. Mais uma vez recorrendo aos arquivos de Fernando Rosas, ficamos a saber que, nele, não se previa a possibilidade de tréguas, de prisioneiros portugueses, de navios rendidos – «sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos». Afirma Rosas. «Estando, obviamente, a vitória fora de causa, ordenava-se a morte e uma resistência “ao menos de oito dias”, para que o Governo lograsse suster o ataque através da mobilização das instâncias internacionais». Sabemos o que aconteceu. Apesar da estrondosa vitória no tribunal de Haia – «O Tribunal de Haia decreta que tanto o bloqueio como a posterior invasão dos territórios de Dadrá e Nagar-Haveli, no ano de 1954, foram ilegais e a Índia deve devolver a Portugal a sua posse» – as tropas de Nehru, o Pandita, compostas por 40.000 soldados da União Indiana, apoiados por tanques e artilharia pesada, pela aviação e por uma esquadra naval, avançam na noite de 17 para 18 de Dezembro de 1961 e atacam por terra, ar e mar os territórios de Goa, Damão e Diu. Para evitar o massacre, o general Vassalo e Silva, que era um Homem, alegou razões de consciência para não acatar a ordem de Salazar e aceitar a rendição. O exército português não chegava a três mil homens. Sobrou a patética resistência do velho navio Carvalho Araújo, no porto de Mormugão, e de algumas guarnições em Damão. A Roma do Oriente caiu com a mesma facilidade com que caíra a Roma do Ocidente.
Agora, perguntarão alguns, ainda existe um resto de nostalgia pelo domínio português neste canto ensolarado do mundo? Claro! Sobretudo por parte das classes mais altas, os brâmanes e os chardós, que tiveram direito a ser terratenentes e donos das extraordinárias mansões que explodem em cores pastel pelo meio da verdura dos coqueiros, das palmeiras e dos cajueiros. Goa tornou-se um paraíso turístico para toda a espécie de mamíferos vindos de todos os cantos do planeta. Ingleses que só querem beber litros de cerveja e andar à pancada como nas noites de Albufeira; rapaziada que sabe que fuma por aí uns valentes charros sem que haja uma farda à vista; sugar mammies e sugar daddies que vêm em busca de sexo rejuvenescido com garotos e garotas de vinte anos; saudosos de uma adolescência perdida há muito e que redescobrem que ainda há um lugar exótico no qual os sonhos se voltam a sonhar. Ou ainda alguém, como este que escreve, que nunca saberá explicar o fascínio de um horizonte mágico ao longo de um pedaço de areia que ferve.