Acreditava que devemos ser fiéis nas pequenas coisas porque “é nelas que encontramos a nossa força”. Defendia que devemos espalhar amor onde quer que estejamos e que nenhuma pessoa deve afastar-se de nós “sem que a tenhamos deixado mais feliz”. Sentia que o que fazia até poderia ser “uma gota no oceano”, mas que este “seria muito menor sem essa gota”. “O amor não pode permanecer por si só. Isso não faz qualquer sentido. O amor tem que ser posto em ação, a essa ação chamamos serviço. Não sei exatamente como será o céu, mas sei que quando morremos e chega a hora de sermos julgados por Deus, ele não pergunta quantas coisas boas fizemos na vida. Pergunta, antes, quanto amor pusemos em tudo o que fizemos”, dizia. Madre Teresa de Calcutá foi, para muitos, a maior missionária do século XX. Fundadora da congregação religiosa Missionárias da Caridade, nascida em Skopje, na Macedónia do Norte, foi beatificada em 2003 por João Paulo II e canonizada em 2016 pelo Papa Francisco. O seu nome é quase sempre associado a boas ações, apontado como exemplo daquilo que se deve fazer na vida – ajudar os mais necessitados. Mas e se a história não estivesse bem contada?
No princípio deste mês chegou aos telespectadores do Reino Unido, através da Sky Documentaries, o novo documentário, dividido em três episódios e intitulado Mother Teresa: For the Love of God?, em português, Madre Teresa: Por Amor de Deus?, que resgata várias das teorias que, ao longo dos anos, tentaram tirar a tão conceituada freira do pedestal, questionando as práticas de autoflagelação e muitas outras ligadas à premissa “o amor para ser real tem de doer”. Afinal, a freira merecia realmente a sua reputação de santa? Ou a sua demonstração de afeto e cuidado foi uma farsa para esconder os seus objetivos de evangelização?
Uma visão Mais sombria Desde a década de 1990 que várias vozes se ergueram para criticar o seu lado mais “sombrio”. Em várias histórias, Madre Teresa é acusada de ser uma “fraude” que seguia “práticas de saúde primitivas” e o seu zelo evangélico para converter os “fracos” e os “vulneráveis” ao rebanho cristão foi, durante muito tempo, objeto de estudo para muitos críticos que não compreendem a “adulação injustificada que foi derramada sobre ela”. “Lado esse sobre o qual nem no Ocidente nem na Índia querem ouvir falar, porque ninguém quer saber que o seu ícone da compaixão, Prémio Nobel da Paz, era afinal uma fanática religiosa amiga de ditadores, ricos e corruptos. Aos pobres pediu resignação e ajudou-os a morrer, sem lhes dar cuidado profissional”, afirmou em 2016 ao El País Aroup Chatterjee, médico de Calcutá residente em Londres, que tem sido o seu crítico mais consistente. Em 2002, o profissional de saúde chegou mesmo a publicar o livro Mother Teresa, the Final Verdict, em português, Madre Teresa, o Veredicto Final, onde afirma que a santa “terá mentido a alguns dos seus apoiantes sobre o destino das contribuições”. Além disso, Chatterjee esteve por trás do documentário Hell’s Angel, em português Anjo do Inferno, do reconhecido jornalista norte-americano Christopher Hitchens, que em 1994 expôs pela primeira vez a nível mundial “a outra face da freira”. Hitchens descreveu a sua organização como um “culto” que promovia o sofrimento e não ajudava os necessitados. No ano passado, foi lançado um podcast intitulado The Turning: The Sisters Who Left, em português A Viragem: As irmãs que Partiram, que trouxe à tona detalhes sangrentos do que era levar uma vida dentro das paredes fechadas da Madre Teresa’s Charity. De fornecer “treino militar” a “isolar” as freiras do resto do mundo à rotina diária de “autoflagelação”, forçando-as a usar correntes com pontas que apontavam para dentro de forma a não as permitir tomar banho, o podcast trouxe testemunhos de ex- irmãs que desmascararam as práticas perversas que continuaram dentro das Missionárias da Caridade.
Em 2016 – ano em que Teresa foi canonizada – a CNN noticiou ainda o relato de Hemley Gonzalez, que trabalhou de perto com a congregação em 2008 (altura em que se voluntariou para trabalhar com as Missionárias da Caridade em Calcutá). o voluntário descreveu uma “cena tirada de um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial”, corroborando as afirmações tanto do médico como do jornalista: nenhum dos voluntários tinha treino médico e não havia enfermeiras ou médicos; as agulhas eram reutilizadas depois de serem passadas por água; os doentes e moribundos tomavam banho em água gelada. Segundo o mesmo, quando questionou o porquê, a resposta que recebeu foi: “É assim que Jesus quer”. E, quando se ofereceu para pagar o aquecimento, disseram-lhe: “Não fazemos isto aqui”. Agora, Madre Teresa: Por Amor de Deus? visa precisamente documentar e reforçar o lado oculto da ‘santidade’ de Madre Teresa e, com isso, avaliar a veracidade das alegações contra ela feitas.
As vozes do documentário Segundo o The Guardian, a nova produção dá voz a uma mulher norte-americana que assumiu ter sentido “uma carga elétrica semelhante ao amor” quando Teresa lhe tocou com a mão, ao dar-lhe a bênção de boas-vindas à congregação. Mais tarde, acabaria por ser confrontada com o facto de a devoção das freiras exigir “a renúncia aos jornais, à rádio e ao contacto com os amigos” – uma forma de “autoflagelação” entre as “irmãs” inspirada na máxima de Teresa de que “o amor, para ser real, tem de doer”. Por sua vez, um órfão de Calcutá atingido pela poliomielite no final dos anos 1970 diz agora que foram as Missionárias da Caridade que lhe salvaram a vida. Mas, diante a câmara, dá a conhecer os efeitos psicológicos da atmosfera, segundo ele, às vezes “brutal”.
Logo no primeiro episódio surge como testemunha o Dr. Jack Preger, cujos 40 anos como “médico de rua” em Calcutá o colocaram em contacto com os sanatórios de Teresa. “As freiras não estavam a prestar os devidos cuidados”, lembra, visivelmente desconcertado. “As agulhas foram usadas repetidamente”, acrescentou. Segundo Preger, não havia assistência prática suficiente, Teresa “encarnava uma versão do cristianismo de culto à dor que não quer aliviar o sofrimento” e, ao que parece, a freira não o escondia. “A nossa vocação não é necessariamente curar. O sofrimento partilhado com a paixão de Cristo é uma coisa maravilhosa”, terá dito Teresa, segundo o jornal britânico. De acordo com uma reportagem do Daily Mail, Mary Johnson – que trabalhou com Madre Teresa durante 20 anos – disse que a santa considerava que ser pobre era bom, uma vez que também Jesus era pobre.
O documentário relaciona a ascensão da direita religiosa nos EUA na década de 1980, sob a presidência de Ronald Reagan, com aquilo que a Madre Teresa afirmou sobre o aborto. A vencedora do Prémio Nobel da Paz de 1979 acreditava que a interrupção voluntária da gravidez era “a maior força de destruição da paz” e “uma morte direta pela própria mãe”. Além disso, é ainda questionado se a santa teria conhecimento dos abusos sexuais de crianças por parte do padre de Boston Donald McGuire e a razão pela qual as contas bancárias da Madre Teresa nunca foram reveladas.
Mesmo depois da sua morte, a 5 de setembro de 1997, em Calcutá, na Índia, as Missionárias da Caridade estiveram sob escrutínio público várias vezes, sendo a mais recente um escândalo de tráfico de seres humanos que foi exposto em 2018. Houve também relatos anteriores que revelaram que as freiras do Nirmal Hriday – um hospício estabelecido pela Madre Teresa, em Ranchi, Jharkhand – vendiam crianças. No dia 7 de julho de 2018, uma freira foi presa por supostamente vender um bebé de 14 dias nessa mesma casa. Além disso, em dezembro de 2021, a polícia de Gujarat registou uma queixa contra a associação Missionários da Caridade, em Vadodara, acusando-a de supostamente “ferir os sentimentos religiosos hindus e atrair jovens para se converterem ao cristianismo”: as meninas que moravam na casa eram obrigadas a ler textos religiosos cristãos e a participar em orações cristãs com a intenção de atraí-las para o cristianismo.
gigante da caridade “A Madre Teresa, apesar da sua imagem de uma mulher pequena e aparentemente frágil, foi efetivamente uma gigante da caridade, no sentido mais humano do termo, na medida em que foi capaz de descer até ao mais baixo degrau da existência humana para resgatar a dignidade dos mais pobres e miseráveis, dos intocáveis e descartados pela sociedade”, defende Félix Lungu, membro da organização Ajuda à Igreja que Sofre (AIS). Uma vez que se trata de uma organização católica, “a práxis está intimamente ligada à espiritualidade cristã que procura ver a presença de Deus nos que sofrem”, diz sobre a AIS. “Portanto, haverá aqui sempre uma possível ligação espiritual com a Madre Teresa”, afirma ao i. De acordo com Lungu, a dedicação e as palavras da missionária, assim como a obra que deixou – “para não falar do reconhecimento da sociedade civil (Nobel da Paz), da Igreja (canonização) e de tantas vidas que se deixaram tocar pelo seu exemplo e testemunho” – falam “eloquentemente da sua marca”.
Apesar de admitir não ter conhecimento profundo da vida comunitária das Missionárias da Caridade nem de qualquer prática de autoflagelação da Madre Teresa, Lungu faz questão de frisar que “é do conhecimento público que a autoflagelação foi uma prática ascética presente em várias correntes religiosas, atualmente caída em desuso”. “Numa visão dualista de um mundo entendido como lugar de oposição e combate entre o bem e o mal, Deus e o diabo, espírito e matéria, o caminho da perfeição era apontado como exercício de libertação de tudo o que pudesse aprisionar o espírito a este mundo material”, explica, salvaguardando porém que esta visão maniqueísta do mundo “não é a visão cristã da Igreja”. “Por isso não me parece correto usá-la como chave de leitura para qualquer tipo de prática de mortificação”, defende.
A frase “o amor para ser real tem de doer”, considera, não deve ser entendida neste contexto “de luta entre a matéria e o espírito”. “Este amor de que a Madre Teresa fala tem antes um significado profundamente cristão, no sentido de ser um amor encarnado, real, palpável, capaz de transformar a própria vida e a vida daqueles com quem se relacionou. Não foi apenas um sentimento ou uma mão cheia de boas intenções. Foi real e possível apenas através de uma entrega radical”, sublinha o membro da AIS.
Além disso, Félix Lungu defende que “o voto de pobreza das Irmãs da Caridade é um dos mais radicais votos existentes na vida religiosa contemporânea”, por isso, “a frase deve ser entendida no contexto desta vida que se entregou (dada, gasta, oferecida)”. “Penso que a frase completa é: ‘O amor, para ser verdadeiro, tem de doer. Não basta dar o supérfluo a quem necessita, é preciso dar até que isso nos doa’. Então, o significado da dor e do sofrimento ganha outra luz e um novo sentido, pois não se trata de um sofrimento masoquista – sofrer por sofrer – mas o aceitar que para conseguir algo maior é preciso ir até ao limite, assumir a dor, o sofrimento, a incompreensão, a perseguição e até a morte”, aponta, fazendo referência a uma passagem bíblica que diz “se o grão de trigo caído na terra não morre; ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então ele produz muito fruto”.
Quanto às alegações polémicas ou outras críticas, Félix Lungu não quer especular. Contudo, permite-se a dizer, num registo pessoal, que “ao olhar para a Madre Teresa naquilo que fez, nas palavras que disse e na obra que deixou”, vê “rasgos de uma vida vivida em plenitude, inspiradora e porventura também com algumas sombras”. “Que seria de um rosto sem as rugas? Deixaria de ser bonito? O que é a beleza? Quem a define? Creio que a Madre Teresa foi uma mulher profundamente humana, com coisas boas e menos boas. Terá falhado em alguma coisa? Sem dúvida, mas as limitações em nada diminuem o dom da sua vida”, remata, sublinhando que a fé “não deve ser influenciada por uma pessoa ou instituição, por ser um ato pessoal de confiança em Deus”. “A fé é saber que não estamos sozinhos, é sentir que somos amados. É um milagre que acontece todos os dias muito para além da espuma das notícias do momento!”.